O SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia (membro da AFM) vem através desta nota pública somar-se a rede de solidariedade à Amanda Palha, militante dos direitos humanos e ativista travesti que vem nos últimos dias sofrendo intensa perseguição política e fundamentalista por seu posicionamento durante o seminário Democracia em Colapso?, realizado pela Editora Boitempo em 2019. Amanda trouxe, desde a sua perspectiva situada, uma análise que critica o modelo de família nuclear capitalista, racista e patriarcal que reproduz uma lógica de dominação e cerceamento à outras formas de experimentar a vida.
Num contexto brasileiro e mundial que se tem o avanço do fundamentalismo não só no campo religioso, mas também na cultura, a fala de Amanda Palha incomoda porque traz no cerne da questão uma perspectiva que é antissistêmica, que questiona e problematiza as normas sociais que nos são impostas desde um modelo de sociedade que é pensado e construído para ser legitimado à uma única experiência que se pressupõe universal. Os ataques que a ativista vem sofrendo na internet e nas redes sociais estão sendo feitos por setores da sociedade que tem interesses em manter as estruturas de poder como forma de controlar a liberdade.
A crítica feita pela ativista ao modelo nuclear heteronormativo burguês não é uma novidade e vem sendo pautada historicamente por diferentes campos políticos e filosóficos, por ser uma experiência que é imposta como uma norma e que é limitada, diante a pluralidade social e da diversidade de experiências sobre o que se entende por família no mundo. A família neste modelo patriarcal é cercada por interesses sociais e econômicos, ligada à propriedade privada, uma vez que o trabalho reprodutivo das mulheres e o trabalho doméstico estruturam o capitalismo, cria estereótipos que aprisionam as mulheres a um destino de submissão e que mantém o domínio, a exploração e o controle sobre nossos corpos e sexualidades. É importante lembrar que no Brasil, segundo dados divulgados no ano passado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, nos 263.067 casos de registrados de violência contra as mulheres em 2018, 88% dos agressores são maridos ou ex-maridos das vítimas. 53% dos casos de estupros de meninas de até 13 anos no país, foram cometidos por pais, tios, irmãos, primos, avôs.
Diante desse contexto, a família nuclear como um espaço seguro deve mesmo ser questionado para além de um simples debate moral fundamentalista. É uma instituição que é parte da formação social que estrutura o sistema de dominação e exploração. É preciso fazer um debate crítico sobre qual o papel da família monogâmica, heteronormativa burguesa para a manutenção das desigualdades de gênero, raça e classe, na conformação dos modelos de sexo e gênero, bem como da sua naturalização. E não só, qual a influência desse modelo na invisibilização das subjetividades, vidas, criminalização e violência contra a população LGBTQIA+, sobretudo às experiências trans e travestis.
Repudiamos a distorção que tem sido feita com o vídeo da fala de Amanda, bem como defendemos a liberdade de expressão como um elemento fundamental da democracia.
Recife, 29 de janeiro de 2020.
Em entrevista ao SOS Corpo, Amanda Palha, ativista travesti e militante pelos direitos humanos, apresenta seu ponto de vista sobre os desafios da luta pela visibilidade trans e as contribuições que o transfeminismo pode dar às lutas dos movimentos sociais para a superação dos sistemas que nos oprimem. Leia aqui:
“Não dá para construir uma estratégia antissistêmica sem compreender o caráter social do sexo”