Encontro anual argentino, realizado de 12 a 14 de outubro, reúne mais de 200 mil participantes.
Por: Carla Gisele Batista*. Originalmente publicado aqui.
Para chegar à resplandecente Estação Constitución, em Buenos Aires, passamos por africanos migrantes que vendem toda variedade de coisas, expostas em panos coloridos no chão. Cenário de pobreza comum a grandes cidades de vários países mundo afora. No trem, aos passageiros usuais, sobressaem jovens mulheres. Cabelos e roupas coloridas, elas são belas e confiantes e há muita conversa, uma alegria sussurrada contaminando o ar. Um pequeno grupo, sentadas ao fundo do vagão, é repreendido por dois policiais para que fiquem de pé. Arbitrária demonstração de poder. Como descem na estação seguinte, elas e outros jovens voltam a se sentar no piso do vagão e começam um animado jogo de cartas. O trem nos leva rumo ao 34º Encuentro Nacional de Mujeres (34ENM) que ocorre anualmente na Argentina, a cada ano em uma cidade diferente. O cuidado é para que sempre seja um local central, facilitando a vinda autogestionada de participantes que saem de todos os rincões do país.
As informações sobre o 34ENM podiam ser baixadas por aplicativo que funciona, inclusive, off line. Inscrição, hospedagens solidárias, mapa da cidade de La Plata e território do encontro, formas de transportes, história dos encontros, programação, um sem número de atividades culturais e festas, comunicados… tudo, afinal, que era preciso saber, circulava por ali. Havia também uma rádio de transmissão contínua, página no facebook, e atenção da mídia convencional, ainda que nesta nem sempre as abordagens correspondessem ao vivenciado pelas participantes. Houve quem apostasse no caos e no antifeminismo. Mas o que se via era uma La Plata sendo percorrida por mulheres de forma tranquila e harmoniosa. E era bonito vê-las por toda parte, chegando com delicadeza, respeito e ocupando os espaços. De forma horizontal, todas eram responsáveis para que tudo corresse bem. As bruxas estavam afetuosamente soltas! O Lilás e o verde, cor da Maré Verde, a Campanha pela Legalização do Aborto, predominavam nas vestes, detalhes, maquiagens. Nas mochilas mate e garrafas térmicas para esquentar as discussões. Eram as alquimias que embalavam esperanças de futuro.
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Há menos de duas semanas das eleições presidenciais (27 de outubro), tanto a mobilização massiva das argentinas como o tema do aborto tiveram destaque no primeiro debate entre candidatos transmitido pela TV domingo à noite (a participação é obrigatória por lei e a ausência pode ser sancionada com corte de recursos/espaços para publicidade de campanha). Temas relacionados a gênero e direitos humanos foram pautados com destaque e defendidos, seja com posicionamentos progressistas – caso das candidaturas de esquerda que se afirmam claramente pela descriminalização ou legalização do aborto – como pelos conservadores, contrários. O fato é: na Argentina as pautas das mulheres não podem ser “empurradas para debaixo do tapete”. É certo que os encontros e as manifestações massivas como o Nem Uma a Menos e a Maré Verde têm papel importante para que seja assim.
Se a véspera foi de lua cheia, as chuvas torrenciais e problemas elétricos no Estádio Ciudad de La Plata determinaram o cancelamento da atividade de abertura pela Comissão Organizadora (CO), formada por militantes da cidade que recepciona o encontro. As fortes chuvas não impediram, no entanto, que uma marcha chegasse até a frente do Estádio. Convocada pela Campanha Somos Plurinacional, iniciativa de mulheres indígenas, reivindicavam o reconhecimento no nome do Encontro, assim como outros grupos dissidentes. Juntos/as proclamavam que fosse este o 34º Encuentro Plurinacional de Mujeres, Lesbianas, Travestis, Trans, Bisexuales y No Binaries.
Este foi um ponto de tensão vindo de encontros anteriores. Em comunicado, a CO afirmou que: os encontros sempre foram plurinacionais, com a participação de povos originários e migrantes, sem discriminação, nacional no caso se refere ao território Argentino; as identidades de gênero e sexuais estão atravessadas por outras especificidades, são bem vindas como parceiras, mas o encontro é de mulheres; no encontro anterior o tema foi discutido em 24 das mais de 300 oficinas e não houve um acordo sobre mudança e que nome adotar; não caberia à CO definir a modificação. Tensão que parece ter sido superada ao final. A partir do ano que vem o nome deverá ser: 35º Encuentro Plurinacional de Mujeres, Lesbianas, Travestis, Trans y No Binaries, aclamado no ato de encerramento, desta vez abrigado por um Estádio repleto.
Passeatas e manifestações convocavam paralelamente às oficinas programadas para a tarde do primeiro dia, manhã e tarde do segundo. Destaques para o pañuelazo organizado pela Maré Verde e a marcha contra os travesticídios. As atividades iam se armando e desarmando como as barracas na Plaza San Martin, transformada em camping. Praças e avenidas abrigaram comércio alternativo realizado por participantes que vendiam comidas e artesanatos, arrecadando recursos para cobrir a viagem.
Ao chegar às universidades ou colégios destinados às oficinas se podia ter uma melhor noção da capacidade de mobilização do encontro. Salas e corredores estavam superlotados. As oficinas aconteciam em todos os lugares. Organizadas em torno de 87 temas – número que cresce à medida que novo tema se impõe -, quando o espaço previsto para abrigá-las estava repleto, fazia-se um círculo nos corredores, cafeterias, vãos… qualquer área que ainda estivesse desocupada podia abrigar novo grupo de reflexão e debate. Cada mulher com direito a voz, sem hierarquias. Para muitas das jovens participantes essa foi a primeira experiência de trocas coletivas. Os encontros aconteciam em todas as dimensões, parecia difícil não se sentir acolhida.
Mas nada se compara à tradicional passeata que aconteceu ao final do segundo dia. O volume de pessoas nas ruas era incomensurável. Eram multidões chegando de todos os lados, compactas, com suas bandeiras, músicas, palavras de ordem, carregadas de cores as mais diversas. Foi de uma força arrebatadora e emocionante. Nunca presenciei nada parecido e tão contagiante!
Uma curiosidade: a municipalidade recebeu policiais mulheres de outras cidades que eram vistas, sem ostensividade, por toda parte. Mas, a segurança das passeatas eram feitas pelas próprias participantes. Elas criavam colunas para fechar a passagem e, solidariamente, criaram alguns intervalos rápidos para que carros atravessassem rumo aos seus destinos. Tudo funcionava com boa vontade e se organizava espontaneamente. Foi sensacional observar o que e como acontecia.
O 1ENM aconteceu em 1986, no processo de democratização, pós ditadura militar. Realizado em Buenos Aires, no Teatro San Martin, contou com a participação de aproximadamente mil mulheres. De lá pra cá se passaram 34 anos em que aconteceu ininterruptamente. Se inicialmente a participação de feministas não era tão significativa, com o crescimento da juventude a ele identificada, hoje predominam. Nas palavras de Claudia Vazquez Horo, representante das dissidências que argumentou a favor do novo nome no ato final “o 34º encontro de La Plata mudou a história dos encontros por ser o mais massivo e por romper o paradigma do feminismo. Os feminismos somos indígenas, rurais, comunitárias, populares, dos territórios, urbanas. O feminismo não é um só, não é hegemônico, não é das mulheres magras, de classe média. O feminismo somos todas nós as que sempre estivemos marginalizadas e esse encontro, durante 3 anos, não nos nominou. O Encontro Nacional de La Plata já é plurinacional e das dissidências”, no que foi ovacionada. Afirmou, ainda “o inimigo não está aqui, o inimigo é o patriarcado!”.
Ao sul da América Latina vivenciamos 3 dias de uma beleza e de uma força sem precedentes. Me remeteram às recentes manifestações mobilizadas por mulheres/feministas brasileiras: o Ele Não, a Iª Marcha das Indígenas e a VI Marcha das Margaridas. As mulheres estão nas ruas lutando, ainda que se pretenda ocultá-lo. Na Argentina o fazem em tal dimensão que isto não é mais possível. Adapto uma das chamadas das muito cantadas na marcha do 34ª ENM: que momento! que momento! apesar de tudo, fizeram o encontro!!!! (Qué momento! Qué momento! A pesar de todo, les hicimos el Encuentro!!!). A próxima Estação: província de San Luis.
http://www.encuentrodemujeres.com.ar/
No facebook: 34 ENM – La Plata 2019
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*Carla Gisele Batista é historiadora, pesquisadora, educadora e feminista desde a década de 1990. Graduou-se em Licenciatura em História pela Universidade Federal de Pernambuco (1992) e fez mestrado em Estudos Interdisciplinares Sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela Universidade Federal da Bahia (2012). Atuou profissionalmente na organização SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia (1993 a 2009), como assessora da Secretaria Estadual de Política para Mulheres do estado da Bahia (2013) e como instrutora do Conselho dos Direitos das Mulheres de Cachoeira do Sul/RS (2015). Como militante, integrou as coordenações do Fórum de Mulheres de Pernambuco, da Articulação de Mulheres Brasileiras e da Articulación Feminista Marcosur. Integrou também o Comitê Latino Americano e do Caribe de Defesa dos Direitos das Mulheres (Cladem/Brasil). Já publicou textos em veículos como Justificando, Correio da Bahia, O Povo (de Cachoeira do Sul).