Frente a crise, que pesa mais sobre os ombros femininos, grupos como o Tecelãs apostam em ações solidárias contra a fome e a violência doméstica. Também semeiam o autocuidado entre ativistas, para enfrentar o medo e as desesperanças.
Por CFEMEA, na coluna Baderna Feminista, do site Outras Palavras | Ilustração: Lídia Rodrigues.
Ana acordou ao som de tiros, mais uma vez. Dá um aperto no peito cada vez que imagina o resultado de uma ação policial na sua comunidade. Não será a primeira nem a última vez, mas ela sempre se assusta. Como se pudesse, algum dia, habituar-se com a violência do Estado que invade cotidianamente a sua casa, agride a sua família e que negou o direito à vida de seu filho. Como se não bastasse a pandemia, a morte de mais de 500 mil pessoas em decorrência da covid-19 e o risco que ela mesma corre obrigada a pegar um ônibus lotado para ir trabalhar diariamente. Não bastasse o desemprego de seu companheiro e seus familiares, a fome que já assola boa parte de seus vizinhos.
Não basta. A polícia segue alvejando os corpos negros e periféricos, ceifando vidas, destruindo sonhos, como os de Kathlen Romeu, 24 anos, grávida de 14 semanas quando foi atingida por um tiro no tórax no Complexo do Lins, no Rio de Janeiro. Foi assim também que a violência racista do Estado, dissimulada sob o pretexto do “enfrentamento ao tráfico”, assassinou 28 pessoas durante a chacina de Jacarezinho. Em junho de 2020, o Supremo Tribunal Federal determinou a suspensão das incursões policiais em comunidades do Rio de Janeiro, enquanto perdurar o estado de calamidade pública decorrente da pandemia da covid-19, “para não colocar em risco ainda maior a população, a prestação de serviços públicos sanitários e o desempenho de atividades de ajuda humanitária”. Um ano após a decisão, o número de mortes e de tiroteios caiu no estado, ainda assim, de agosto do ano passado a março deste ano, agentes do Estado já vitimaram ao menos 944 pessoas no Rio de Janeiro.
Sem pausa, sem descanso, sem um único minuto dedicado para o cuidado consigo mesma, Ana segue a vida, dia a pós dia, sobrecarregando diariamente sua saúde física e mental. Morrer de tiro, morrer de fome ou morrer de vírus. Ana conhece o destino que o Estado brasileiro traçou, e o atualiza agora em meio à pandemia do novo coronavírus, para ela e os seus. Lutou a vida toda e luta ainda contra ele. Junto a muitas outras mulheres que perderam familiares para a violência do Estado, luta por justiça para os jovens negros assassinados, um a cada 23 minutos neste país. Luta contra o racismo que normaliza o sangue negro derramado ao longo de toda a nossa história. No cenário devastador promovido pelo governo genocida de Jair Bolsonaro, de disseminação do vírus e escárnio diante das quase 500 mil mortes, Ana sabe que a luta pela vida não é escolha.
Mas como se manter em pé, como sustentar uma luta política em um cenário tão hostil, e agravado pela pandemia? A instauração da pandemia em nosso país ampliou os desafios enfrentados pelas mulheres, com o aumento da sobrecarga de trabalho doméstico e de cuidados, o desemprego, o desmonte dos serviços públicos de saúde e assistência social. Historicamente, as mulheres são as mais afetadas nos momentos de crise, e numa crise desta dimensão não seria diferente. Em um ano de pandemia, as mulheres foram as que mais perderam sua fonte de renda, enfrentam a insegurança alimentar em suas famílias e são as que mais estão sofrendo de ansiedade, depressão, insônia, entre outros distúrbios de ordem emocional e físico-moral.
As mulheres ativistas já sofrem os efeitos morais, emocionais e materiais da enorme subversão que praticam ao confrontarem a lógica do capitalismo que defende o lucro acima das vidas e do planeta, do sexismo e do racismo que agridem diariamente os corpos das mulheres, LGBTI+ e pessoas negras. Num contexto onde a luta por direitos é o único caminho para sobrevivermos e construirmos saídas para a crise, é preciso sustentá-la, além de sustentarmos a nós mesmas.
Desde o início da pandemia, as mulheres têm protagonizado a construção de respostas à emergência sanitária, social, econômica e política que vivemos, mobilizando campanhas de arrecadação de recursos para a doação de alimentos e kits de higiene pessoal, denunciando a violência doméstica e acolhendo mulheres nessa situação, denunciando violações de direitos das populações vulnerabilizadas, fortalecendo vínculos comunitários e redes de apoio, tecendo fios de resistência para si mesmas, suas comunidades e coletividades. Neste contexto, o cuidado se revela cada vez mais um princípio e uma ferramenta essencial não apenas para a nossa sobrevivência, mas também para a nossa resistência.
Assim, iniciamos a tessitura de uma rede que conecta mulheres como Ana a outras ativistas em todo o território nacional, para construir uma resposta política cuidadosa, afetiva e acolhedora com as mulheres frente aos desafios da pandemia da covid-19. A rede das Tecelãs do Cuidado nasceu em abril de 2020 com o objetivo de dar sustentação às mulheres e suas lutas, rompendo com a lógica do individualismo e fortalecendo laços de solidariedade e confiança, mobilizando ações coletivas de cuidado frente a política de morte imposta pelo governo, e que só se agravou de lá pra cá.
Esta iniciativa, fomentada pelo CFEMEA, hoje articula mais de 30 mulheres engajadas em lutas feministas, antirracistas, anticapacitistas, pelo direito à terra, pelo respeito à diversidade e o direito de amar quem quisermos, pela educação, em defesa da saúde pública, entre outras lutas políticas. Além das iniciativas de solidariedade e mobilização para o enfrentamento da crise que promovem em seus territórios, realizam rodas virtuais de autocuidado e cuidado entre ativistas para compartilharem experiências de autocuidado, experimentarem metodologias diversas e ferramentas para lidar com as tensões, o estresse, a exaustão, o cansaço, a solidão, o medo, a insegurança, a invisibilidade, o silenciamento, decorrentes do contexto que se agrava com a pandemia e, assim, potencializar a justa indignação e disposição das mulheres para a luta.
Desde abril do ano passado, as rodas têm se constituído enquanto espaços seguros, criativos e acolhedores, onde mulheres como Ana, submetidas às mais diversas formas de violência ao longo de suas vidas e lutas permitem-se experimentar o cuidado de si, conectar-se com a sua força interna e a força coletiva que a partilha desse cuidado com outras mulheres produz.
Quando as mulheres encontram caminhos para o cuidado de si, investem no seu crescimento e fortalecimento, elas subvertem as lógicas da opressão sexista e racista que nos obrigam a direcionar o nosso cuidado aos outros, nunca a nós mesmas. Esta subversão, ao trazer ao centro da luta política a importância do autocuidado e do cuidado coletivo, é uma forma de resistência política e de afirmação do cuidado enquanto um direito de todas as pessoas. No cenário em que vivemos, o autocuidado e o cuidado coletivo se revelam fundamentais para atravessarmos esse período de crise e construirmos saídas para ele.
A história de Ana, personagem que trouxemos no início deste texto, poderia ser a história de Maria Santina, Diana, Gésia ou Sônia, algumas das mulheres que em meio aos desafios da crise que vivemos estão tecendo fios de cuidado para nos enlaçar, juntas, na resistência. Fios que se conectam criando uma rede de acolhimento, pertencimento e segurança entre mulheres de luta. Essa teia fiada a várias mãos ganha força e vigor nas rodas virtuais de autocuidado e cuidado entre ativistas:
É um momento assim de um autoconhecimento mesmo, de autoestima, de se enxergar como pessoa… de entender que você faz parte de um todo.
É uma outra terapia que eu faço, eu faço questão quando tem rodas, eu faço questão de organizar, de me programar pra eu tá participando. Porque ver outras mulheres que compartilham da mesma luta que você… que te ouvem, eu me sinto abraçada, eu me sinto ouvida, eu me sinto compreendida, eu me sinto livre pra falar o que eu sinto, eu sinto que é uma troca, sabe? Eu sinto que eu ajudo mulheres… E eu sinto que eu sou ajudada.
Nas rodas, a gente na verdade se aproximou mais, porque conhecer a angústia da outra, conhecer a força ou fraqueza da outra, nos dá uma outra visão, inclusive pra gente poder nortear as estratégias de como a informação que a gente tá dando, enquanto militância, vai chegar a outra pessoa, porque algumas vezes, nós confundimos o nosso entender com o de quem está ouvindo, né?
As mulheres já têm experiência, essa rotina [de se colocar e construir politicamente], mas a partir do autoconhecimento, a partir do momento que elas solucionam primeiro o interior delas, elas se melhoraram – ‘estou melhor’ para poder junto com as outras buscar soluções para os problemas coletivos.
Esses relatos das Tecelãs, colhidos ao longo das rodas de autocuidado e cuidado entre ativistas realizadas por elas, ilustram a nossa compreensão de que o cuidado, o acolhimento e a solidariedade entre nós, mulheres feministas antirracistas, são uma ação política necessária e urgente neste contexto em que estamos sobrecarregadas, cansadas, adoecidas e, ainda assim, de punhos erguidos para defender nossos direitos e construir caminhos de mudança.
Além desta experiência das Tecelãs do Cuidado, as mulheres estão mobilizadas, tecendo fios de resistência, cuidado e solidariedade em todo o país. No Rio de Janeiro da nossa personagem Ana, o projeto Agora é a Hora, realizado pelas organizações Criola, Instituto Marielle Franco, Movimenta Caxias e PerifaConnection, junto com lideranças do estado, busca garantir o “direito das mulheres negras de seguir em frente”. O projeto articula ações humanitárias emergenciais, como a entrega de cestas básicas, materiais de higiene e outros mantimentos, à ação política para a defesa de direitos – o monitoramento e denúncia das perdas em direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais, e das violências vivenciadas pela população negra, em especial mulheres negras. Além disso, compartilham a metodologia que elas desenvolveram para que novas experiências possam ser realizadas a partir dela, e nos convidam a também compartilharmos nossas metodologias e fortalecermos essa teia que nos conecta e fortalece nossa resistência a cada dia.
As mulheres do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, além de seu engajamento na ação de solidariedade que tem mobilizado os assentamentos do movimento em todo o país e distribuído toneladas de alimentos para famílias em situação de insegurança alimentar, também estão tecendo redes feministas de afeto e enfrentamento à violência, ampliando a conexão solidária entre mulheres do campo e da cidade. A campanha Mulheres Sem Terra: contra os vírus e as violências busca fortalecer as mulheres para enfrentar os desafios da pandemia através do combate à violência, do autoconhecimento e autocuidado, e da promoção da produção, da cooperação e da autonomia das mulheres. Como afirma Ceres Hadich, dirigente nacional do MST, o que a campanha e as ações de cuidado e solidariedade estão promovendo vai muito além da ajuda humanitária e da resposta emergencial à crise: “Não estamos falando de cestas, nem de solidariedade, nem de mulheres, ou mesmo de empatia: estamos falando de processo, de construção, de possibilidade de fazer diferente, por nós todas, porque vivas, livres e despertas nos queremos”.
A partir do cuidado conosco e com o planeta, subvertemos as relações de subordinação e dominação que nos são impostas, e tecemos vínculos de reciprocidade. Compartilhamos e experimentamos outras possibilidades de sermos e existirmos, e vamos abrindo os caminhos para a transformação que vislumbramos.
Resistência é substantivo FEMINISTA, e a saída é coletiva.