O 18 de outubro de 2019 ficou marcado no Chile, e no mundo, como o início do Estallido Social (explosão social), uma série de manifestações que estão acontecendo não só na capital, Santiago, mas em todo o país. Fiz uma visita ao Chile por causa destas manifestações. Militante feminista que sou, queria ver de perto, tentar compreender um pouco mais. No fundo, no fundo, uma indagação: porque eles/as e nós não? O que leva a uma mobilização persistente da sociedade – no próximo 18 completarão 4 meses – contra as instituições de forma geral, contra todas as formas de opressão e exploração? A resposta não é simples, nem tão pouco a encontrei. Conversei com muita gente nas ruas e também com integrantes de movimentos sociais, feministas ou próximos/as a eles. Veronica Matus, vice-presidenta do La Morada (membro da AFM), foi uma destas pessoas.
Por Carla Gisele Batista*
Veronica avalia que o movimento 8M alcançou “encarnar” o feminismo em distintas lutas. Recuperando os antecedentes, cita o ano de 2016 quando se organizaram em torno à convocatória do Ni Una a Menos, que em 2018 explodiu! A maioria são jovens, em um movimento que reconquistou o pluralismo que o movimento feminista chileno havia perdido depois dos anos 90. Anos em que foi criado o Serviço Nacional da Mulher, com status de ministério, mas que só virou ministério realmente em 2015, no governo de Michele Bachelet. Passou a ser o Ministério da Mulher e da Equidade de Gênero. Conta que no processo de pactuação para a transição da ditadura militar, uma parte do feminismo se alinhou ao Estado e muitas militantes se filiaram aos partidos políticos. Estado esse que, entre outras coisas, proibiu tratar de divórcio, que era chamado, inclusive, de “desvinculação matrimonial”. A igreja católica, que foi um importante ator de acolhimento das lutas anti-ditadura, hoje, depois dos escândalos de violação sexual, está em declínio.
Veronica reconhece que a institucionalidade nunca deu ao Movimento Feminista um lugar de potência. Este movimento tem se mantido autônomo em relação ao Estado e aos partidos políticos, porque os últimos estão sempre negando e buscando submeter as mulheres e não valorizam os movimentos sociais como interlocutores. Para se ter uma ideia, o Senado chileno levou 19 anos para tramitar o Protocolo CEDAW – Convenção Contra Todas as Formas de Discriminação às Mulheres.
Veronica analisa que as manifestações atuais cresceram numa lacuna aberta entre o discurso da igualdade e o que é cidadania real. Lembra que as mulheres, no Chile, sempre fizeram grandes manifestações. Um exemplo é o de quando houve o debate sobre a pílula do dia seguinte, em 2008. “Mas, inclusive nós dos movimentos, o reconhecemos quando ele age publicamente, não como cotidiano. O movimento existe sempre, mas só se visibiliza quando se coloca publicamente”. E, como se sabe, ele tem atuado publica e fortemente nas ações em torno ao Estallido social.
Assembléia Constituinte
Verônica vislumbra na anunciada convocação da Assembléia Constituinte – que tem plebiscito para a confirmação da abertura do processo marcado para 26 de abril – a mesma lógica da transição da ditadura: “um acordo de elites, que se cercam sobre si mesmas e propõem essa saída. Estas elites não compreenderam ainda que hoje há um forte movimento social”.
A condição que foi colocada para a Constituinte é a paz, isto é, que as pessoas saiam das ruas. Mas, acredita, voltarão com mais força em março, quando acabar o período de férias estudantis. “O que está acontecendo é uma nova forma de guerrilha urbana”.
Direito ao aborto
Conversamos sobre a lei de aborto (Em 2017 o Chile o legalizou em 3 causais, semelhantes aos que estão descriminalizados no Brasil de hoje). A lei tem encontrado dificuldade de implementação, principalmente porque Piñera, o atual presidente – que tem sido fortemente rechaçado nas manifestações – apresentou um protocolo que contemplou a objeção de consciência, à qual recorrem cerca de 70% dos profissionais de saúde.
Levantamentos de junho de 2019 demonstram que, de antemão, 1 em cada 2 obstetras se declara objetor nos casos de estupro; 1 em cada 4 objetor nos casos de inviabilidade fetal; 1 em cada 5 nos casos de risco de vida da mãe.
A casa da mulher La Morada
Fundada em 1983, “é um lugar para a escritura de uma memória feminista, a expressão de vozes e falas diversas, a criação de conhecimento e a inovação no âmbito das relações de gênero. Nasceu no período da ditadura cívico militar e é uma referência para o feminismo que surgiu nos anos 80, quando o lema das lutas era democracia no país e em casa”.
La Morada foi responsável pela criação do primeiro programa de violência doméstica no país. Possui uma escola de lideranças e também faz formação para funcionários/as públicos/as. Possui um centro de atendimento à violência em parceria com universidades, voltado para jovens universitárias.
Veronica me conta que querem fazer no 1º de março o Encontro Feminista Chileno, que ha muito tempo não é realizado. Pergunto porque? Por uma questão geracional, ela diz. “O Encontro ficou reconhecido como daquelas que são institucionalizadas. As jovens de hoje são mais assembleistas”, se articulam em outros espaços, como no Encontro das que Lutam, do qual participei e contarei mais nas próximas colunas.
As “meninas”, diz ela de forma amorosa e com admiração, alcançaram instalar o feminismo em todas as práticas. Elas estão repolitizando o verdadeiro sentido da política. E lembra o lema mexicano “do amor à necessidade”, se referindo a estas jovens de luta!
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*Carla Gisele Batista é historiadora, pesquisadora, educadora e feminista desde a década de 1990. Graduou-se em Licenciatura em História pela Universidade Federal de Pernambuco (1992) e fez mestrado em Estudos Interdisciplinares Sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela Universidade Federal da Bahia (2012). Atuou profissionalmente na organização SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia (1993 a 2009), como assessora da Secretaria Estadual de Política para Mulheres do estado da Bahia (2013) e como instrutora do Conselho dos Direitos das Mulheres de Cachoeira do Sul/RS (2015). Como militante, integrou as coordenações do Fórum de Mulheres de Pernambuco, da Articulação de Mulheres Brasileiras e da Articulación Feminista Marcosur. Integrou também o Comitê Latino Americano e do Caribe de Defesa dos Direitos das Mulheres (Cladem/Brasil). Já publicou textos em veículos como Justificando, Correio da Bahia, O Povo (de Cachoeira do Sul).