Por Izabella Borges*, em colaboração a MULHERES EM MOVIMENTO. Mulheres em movimento no 28 de setembro – Dia de Ação Global pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro (9). Publicada originalmente em Folha de Pernambuco.
Na França, a lei relativa à interrupção voluntária da gravidez, conhecida como Lei Veil – nome de sua relatora, a então Ministra da Saúde Simone Veil -, é a lei que regulamenta e despenaliza a interrupção voluntária da gravidez (IVG). Promulgada em 12 de janeiro de 1975, a lei Veil complementa outra lei igualmente elaborada por Simone Veil e promulgada na mesma época, a lei de 4 de dezembro de 1974, que autoriza os centros de planejamento familiar a fornecer anticoncepcionais sob prescrição médica a menores de idade, gratuita e anonimamente.
Perfazendo a base desse primeiro e importante passo, ao mesmo tempo real, político e simbólico para a conquista das mulheres sobre o controle dos próprios corpos, os custos de cuidados e de hospitalização vinculados à IVG passaram a ser cobertos pela seguridade social, primeiro parcialmente, em 1983 e, em seguida, integralmente a partir de março de 2013. Aborto legal e seguro, planejamento familiar e acesso gratuito à contracepção são direitos hoje inscritos na lei francesa e amplamente observados em todo o território nacional e ultramarino.
Contudo, uma “lei” de tal porte e impacto societal – sua redação e promulgação, sua implementação e a extensão gradativa dos direitos inicialmente obtidos – não surge do nada: ela é, como sabemos, o resultado de intensa, e por vezes acirrada, mobilização social, política, midiática e intelectual. No que diz respeito aos países europeus, a conquista do direito de interromper voluntariamente uma gravidez, é, sobretudo, a vitória de uma longa e árdua batalha travada pelas mulheres.
Na França, na esteira da Revolução de Maio de 68, foi criado o Movimento de Liberação das Mulheres (MLF) cujo objetivo era lutar em todos os níveis da sociedade contra a opressão e a misoginia e obter a paridade de todos os direitos, morais, sexuais, legais e econômicos entre homens e mulheres. A conquista da descriminalização do aborto era, portanto, para o MLF, um primeiro grande passo a ser dado para que as mulheres pudessem conquistar um real direito de cidadania: o direito sobre os próprios corpos.
Pelo direito de decidir: o MLF e a luta pela descriminalização do aborto
Criado em 1970, o MLF foi composto por grupos de diferentes tendências políticas, filosóficas e sociológicas. Desde a sua criação, o Movimento organizou manifestações e debates entre mulheres, ganhando rapidamente força e visibilidade, mas também consciência política, graças, principalmente, à organização de “Psicanálise e Política”, também conhecido por “Psy & Po”.
Articulado e animado pela filósofa e psicanalista Antoinette Fouque, também fundadora do MLF, as reuniões de Psy & Po permitiram que inúmeras participantes se expressassem livremente sobre as raízes da violência contra as mulheres, fomentando ações ao mesmo tempo psicanalíticas e revolucionárias, ou seja, transformações simbólicas e ações reais. Essa articulação do inconsciente com a história, psicanálise e política, responsável em grande parte pela mudança de um paradigma societal arcaico, é de fato a especificidade do movimento francês. Na sequência de sua expansão e mobilizadas junto a outros movimentos em prol da liberação das mulheres, como o Movimento pela Liberdade de Aborto e Contracepção (MLAC) (1), militantes do MLF assinam, o Manifesto 343.
Eu abortei
No dia 12 de outubro de 1971, o tradicional semanário Le Nouvel Observateur, publicou um manifesto no qual centenas de celebridades francesas declararam terem abortado, violando o artigo 317 do código penal. Redigida por Simone de Beauvoir e liderada pela atriz Jeanne Moreau, a tribuna, que levava o nome de Manifeste 343, foi assinada por personalidades do mundo literário e do show business: Simone de Beauvoir, Marguerite Duras, Antoinette Fouque, Françoise Sagan, Catherine Deneuve, Judith Magre, Delphine Seyrig e Agnès Varda, entre outras.
As 343 signatárias do manifesto, impulsionadas por recentes conquistas em outros países da Europa e pelo evidente atraso da França em questões relacionadas às liberdades das mulheres, clamavam: “Nós, 343 mulheres europeias, defendemos uma Europa dos direitos das mulheres e da autodeterminação”. O texto é concluído por uma demanda claramente expressa pelo aborto gratuito.
O objetivo do manifesto era sinalizar publicamente a existência do problema e pressionar o governo a se posicionar. O Ministério Público optou por não levar adiante possíveis processos contra essas mulheres, que corriam, de fato, o risco de serem presas. O impacto do «Manifesto 343» foi retumbante. No dia seguinte, Le Monde, afirma que o texto marca «uma data na evolução dos costumes”. O jornal assinala: “muitas vezes é necessário escandalizar, infelizmente, para apressar os desenvolvimentos essenciais».
Engajadas na mesma luta, mulheres de todas as idades, de diferentes campos profissionais e políticos, célebres e anônimas, pressionaram o poder público, indo às ruas, aos estúdios de televisão e de rádio, denunciando injustiças, solidarizando-se com mulheres mundo afora, questionando e combatendo a violência de um Estado que persistia em manter o controle sobre os corpos das mulheres, como afirma brilhantemente Antoinette Fouque (2):
Sabemos que as Igrejas nunca deixaram de afirmar o seu domínio sobre o corpo das mulheres, mas esquecemos facilmente que os Estados também têm esse desejo de controlar a gestação: uns proíbem o aborto, outros impõem a esterilidade. Será que existe um Estado sequer que não legisle sobre o corpo das mulheres?
Mas essa vitória, essa grande conquista das mulheres sobre o controle de seus próprios corpos, tanto real quanto simbólica, ainda que substancial, permanece sendo um primeiro passo. Ainda hoje, e talvez mais fortemente, a violência contra as mulheres permanece um fato real nas nossas sociedades. Os dados do Ministério da Justiça Francês indicam que mais de 300 mulheres foram assassinadas por seus maridos ou namorados no ano de 2019. Em seu último relatório, a Inspeção-Geral de Justiça aponta para a ineficácia da política penal francesa em matéria de violência doméstica.
No momento em que escrevo, o assassinato da jovem Franciele Alves Da Silva, de 29 anos, mãe de duas crianças de quatro e dois anos, choca a comunidade brasileira na França. Na última sexta-feira, Franciele foi brutalmente assassinada pelo marido no apartamento em que viviam nos arredores de Paris. O coletivo Mulheres da Resistência, em apoio à família de Franciele, tenta, neste exato momento, arrecadar fundos para que o corpo da jovem brasileira seja repatriado e sepultado em sua cidade natal.
Frequentemente isoladas em suas próprias casas, reféns de um sistema político, cultural, social e simbólico que insiste em perpetuar a condição de submissão das mulheres na sociedade, as vítimas de feminicídio e de violências conjugais, contam apenas com o apoio e a solidariedade de outras mulheres, individual e coletivamente.
Apesar dos dolosos pesares, unidas, engajadas, ricas em propostas, maduras e refletidas, as mulheres avançam, às vezes por pequenos recuos, na conquista de suas liberdades e em prol de tempos mais amenos. Oxalá não tarde a chegar esse tempo da alteridade, no qual homens e mulheres possam enfim fundar um novo contrato humano.
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*Izabella Borges é tradutora, mestra e doutora em Língua, cultura e literatura lusófonas pela Universidade Sorbonne Nouvelle.
Notas complementares:
(1)O Movimento pela Liberdade de Aborto e Contracepção (MLAC) foi uma associação criada em abril de 1973 com o objetivo de obter a legalização da interrupção voluntária da gravidez (IVG) na França. O movimento reunia militantes do Planejamento Familiar, do Movimento de Libertação das Mulheres (MLF) e do Grupo de Informação em Saúde. O movimento foi dissolvido em fevereiro de 1975, após a aprovação da lei do Veil que autorizava o aborto.
(2)Psicanalista, escritora, cientista política e co fundadora do MLF, Antoinette Fouque nasceu em Marselha, 1934, e faleceu em Paris, 2014. Doutora em Ciências Políticas, foi autora de obras fundamentais para o pensamento contemporâneo, nas quais teorizava a diferença entre os sexos, trazendo um olhar inédito sobre a questão da procriação. Sua relação com a cena intelectual francesa é bastante diversificada: enquanto psicanalista, ela se interrogava sobre “o que é uma mulher” e demonstrava a existência do que conceituou como “libido uterina”. Nas Nações Unidas e no Parlamento Europeu, no qual foi deputada entre 1994 e 1999, ela contribuiu categoricamente para a conquista de direitos das mulheres. (http://www.antoinettefouque.com/).