Que forma magnífica, bela e poderosa de luta, esta que se faz com a literatura e a poesia!
Por: Carla Gisele Batista*. Originalmente publicado aqui.
“…era uma vez
uma palavra que não havia
nada demais
as palavras levam anos
até viajarem
serem necessárias noutras terras
ou ainda, digamos que
não tínhamos os olhos atentos
para a ausência…”
(Stephanie Borges, p.53)
Ao iniciar a leitura de Um defeito de cor, que será o livro de dezembro nos encontros mensais do Leia Mulheres em Recife – e como é uma leitura densa e de muitas páginas, combinamos de começar muito antes – fico sabendo pela Fernanda Miranda, em Porque a roda é o avesso da torre – das potencias reveladas pela leitura em conjunto de romancistas negras, publicado no Suplemento Pernambuco de junho, que são raros os romances de autoria negra publicados no Brasil. Em sua pesquisa de doutorado na USP ela mapeou cerca de 100, e desses, apenas 14 são de mulheres. Entre eles, a obra da Ana Maria Gonçalves é considerada um marco porque, a partir da sua edição, começa a crescer o interesse pela produção de autoras negras. Entendo que o movimento negro/de mulheres negras tem um papel fundamental nesta mudança de interesses circunscritos da sociedade brasileira, e de rumos editoriais, ampliando-os.
O leia mulheres são comunidades de leitores/as que se espalharam por todo o Brasil. Se encontram periodicamente para compartilhar leituras e discussão sobre literatura produzida por mulheres. Muitos outros grupos, com focos diferentes, têm surgido. Nesta onda, agora em julho foi criado em Maringá/PR, o primeiro clube de leitura voltado exclusivamente aos escritos das mulheres negras. O “Quilombo de leituras negras” começará pelo começo. O primeiro livro será Úrsula, da Maria Firmina dos Reis.
Esses clubes de leitura, me parece, têm uma pegada dos grupos de reflexão ou auto-consciência que estavam na origem do feminismo dos anos 70. Recorro a Maria Betânia Ávila: “nesses grupos discutiam-se as experiências pessoais e coletivas problematizando o contexto social nas quais elas se davam, os problemas vividos no interior da família, do trabalho, da escola, do bairro onde mora, das relações amorosas, etc. O método tinha como objetivo construir análises coletivas que permitissem uma passagem da questão individual para uma análise sobre as relações sociais e suas estruturas de poder que afetavam a vida das mulheres e não estavam concebidas nem legitimadas como problemas para a ciência social, nem para a política”. Aqui, o disparador do debate vem da obra literária e a reflexão coletiva, ainda que contribua para a politização dos temas, não tem como finalidade qualquer forma de organização política dos grupos. As discussões, no entanto, têm um pé no contexto de autorias, obras e participantes.
Novas formas de editar, muitas vezes alternativas, com livros que são vendidos de mão em mão; novas e pequenas editoras, ainda que o momento seja de crise, novos selos ou coleções e interesse em publicar o que as pessoas, que gostam e têm o hábito da leitura, estão ávidas por ler. Tudo se contagia com vozes e palavras que ganham repercussão.
Não à toa Talvez precisemos de um nome para isso (ou o poema de quem parte), primeiro livro de Stephanie Borges, foi o vencedor do IV Premio Nacional de Literatura da Companhia Editora de Pernambuco (CEPE) e será lançado na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) neste 11 de julho. Um texto que intercala poema e prosa curta, para falar de um corpo expandindo consciência e liberdade, que crescem como os cabelos e o reconhecimento da rebeldia sobre o que impõe restrições e opressão. Um corpo que é do tamanho das percepções de uma vida. Um Poema que é dimensão social, política e histórica do corpo território, feita encantamento. Sentimentos e ideias sobre autoimagem, padrões de beleza, animais, cabelo, monstros, transformados em potência da palavra que transforma. Senão veja:
“é triste
que existam meninas virgens, mas seus cabelos não
e naturalizemos a beleza pela dor
a ponto
de parecer normal
o ferro quente carinhosamente
chamado de chapinha,
queimaduras de hidróxido de sódio e guanidina
me avisa quando começar a arder
pra gente lavar, tá” (p.14)
ou então:
“alguns quando se quebram
dependendo do tamanho
partes
podem se tornar
criaturas
inteiras” (p.49)
Já na publicação organizada por Mel Duarte, Querem nos Calar: Poemas para serem lidos em voz alta – uma antologia, 15 poetas, organizadoras e participantes dos slams, ou batalhas de poesia, chamam a atenção para um cenário nacional que é profundamente inspirador, vibrante, posicionado e que, como na citação de Audre Lorde que abre o livro, é um caminho de uma necessidade vital que quer tornar esperanças e sonhos uma ação tangível. Veja no convite de Laura Conceição
“Não gosta de mim: problema
Não gosta do som: desliga
Se gosta de ler: poema
Se gosta de mim: me liga”(p. 85)
Um fio condutor em praticamente todas as autoras passa pela importância das novas narrativas, que anunciam: não recuarão! vozes que urgem serem ouvidas. Contundentes, como em Bell Puã, pernambucana que vai lançar o seu livro Lutar é Crime, dia 25 de julho, no 29º Festival de Inverno de Garanhuns (FIG):
“agora que sei
me derramar
quero distância
de tudo que me
condensa”(p. 36)
E a musa Roberta Estrela D’Alva,
“…recolho o medo e insisto na poesia, que serve pra nada, que serve pra tudo, esse grito estranho e mudo. Um rosário pra lidar com o luto e transformar essa ira em estado bruto, em alento, essa boa e velha raiva em cimento, para edificar novos mundos, esse medo, esse ultraje em palavras, cantiga pra curar ferida. Voz que não cala e denuncia. Ritmo e melodia. Oração.
E baque continua batendo no chão. Homens trabalhando.
Edificando triunfo. Mas não há de ser nada, não.
Não enquanto ainda houver poesia e luta.
Não enquanto ainda nesse peito bater um coração” (p. 193).
Elas seguem à risca e no risco o que sugere Ryane Leão
“só podemos mudar
aquilo que nomeamos
(…)
então grite
isso não vai te fazer
inabalável
mas toda mulher que fala
é invencível” (p.203 e 204)
Que forma magnífica, bela e poderosa de luta, esta que se faz com a literatura e a poesia!
– No 25 de julho, Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, serão realizadas marchas das mulheres negras em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. Se informe. Participe!
– No 06 de julho foi aberta na Pinacoteca de São Paulo a exposição Grada Kilomba: Desobediências Poéticas. Não deixe de visitar. Seu livro Memórias de plantação: episódios de racismo cotidiano será lançado na 17ª FLIP.
– A citação de Maria Betânia Ávila está em Uma abordagem feminista sobre os problemas para o estudo de gênero, texto que integra a coletânea Métodos Qualitativos nas Ciências Sociais e na Prática Social, organizado por Silke Weber e Thomas Leithauser, Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2007.
_____________________
*Carla Gisele Batista é historiadora, pesquisadora, educadora e feminista desde a década de 1990. Graduou-se em Licenciatura em História pela Universidade Federal de Pernambuco (1992) e fez mestrado em Estudos Interdisciplinares Sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela Universidade Federal da Bahia (2012). Atuou profissionalmente na organização SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia (1993 a 2009), como assessora da Secretaria Estadual de Política para Mulheres do estado da Bahia (2013) e como instrutora do Conselho dos Direitos das Mulheres de Cachoeira do Sul/RS (2015). Como militante, integrou as coordenações do Fórum de Mulheres de Pernambuco, da Articulação de Mulheres Brasileiras e da Articulación Feminista Marcosur. Integrou também o Comitê Latino Americano e do Caribe de Defesa dos Direitos das Mulheres (Cladem/Brasil). Já publicou textos em veículos como Justificando, Correio da Bahia, O Povo (de Cachoeira do Sul).