Fotos: Márcia Larangeira
Quando fui convidada por Carla para escrever um artigo sobre a experiência da pandemia longe do Brasil, de cara me pareceu ser um enorme desafio por ser um tema que, de tão vasto e complexo, tem gerado uma pluralidade de expressões. Por outra parte, não poderia deixar que essa pluralidade escapasse à elaboração do texto. Ao contrário, ela precisaria ser um eixo dessa construção. Assim, partilhei a proposta com amigas de diferentes nacionalidades que moram fora de seus países de origem: algumas se encontram, como eu, aqui em Portugal; outras em países distantes e há quem esteja em trânsito.
Por Márcia Larangeira*, em colaboração à coluna da Carla Batista.
A experiência de deixarmos o lugar de origem implica em muitas dúvidas, resoluções e, mais ainda, incertezas – algumas dessas nunca se resolvem. E com elas na mala, damos um até breve para a família, amigues, casa e paisagem para seguirmos em frente. Como nos lembra o Milton Nascimento, “Coisa que gosto é poder partir / Sem ter planos / Melhor ainda é poder voltar / Quando quero”. Coisas da vida que se repetem nas estações de embarque.
A chegada do coronavírus, ao se deslocar com rapidez desde a China em direção aos quatro cantos do mundo, deu a ver que as incertezas que podemos levar não só de roupas e apetrechos, compõe as bagagens viajantes. E nos vimos metidas/os em situações bizarras, como se estivéssemos num episódio do seriado distópico Black Mirror, onde as vivências que conhecemos como vida cotidiana foram deitadas à terra – algumas vezes, literalmente….
Profissional em artes cênicas, Sylvia Jaimes, se viu metida em uma situação dessas. Ao aproveitar as férias para visitar a família em Bogotá, acabou surpreendida pelo fechamento das fronteiras. Para retornar a seus compromissos, teve que apelar ao consulado de Portugal para autorizar seu retorno, o que só ocorreu em maio. A gravidade dessa situação é por ela sintetizada: “Pela primeira vez, tive a noção de como as liberdades que temos conquistado podiam desaparecer de um dia para outro”.
A julgar pelo que temos visto hoje, em países onde prevalece a tradição do autoritarismo, a supressão da liberdade associada ao fechamento de fronteiras devido a riscos de contaminação por vetores de doenças, não está longe de tornar-se situação corriqueira. E mais: se tornar um critério que, somado a tantos outros, radicalizarão o controle da circulação de pessoas (mas não de mercadorias) entre diferentes países. Afinal, não é de hoje que milhares de mulheres e homens de todas as cidades vivem em êxodo para escapar de situações extremas em seus países como a guerra, a fome e a miséria. E assim vamos nos “acostumando” com o que se convencionou nomear como novo “normal” – termo que deveríamos abolir tamanha a carga de preconceito que carrega consigo – que já impregna a nossa experiência individual e coletiva.
Que outros elementos passaram a compor essa experiência? Que tipo de reflexões ela coloca diante de nós? O que se modifica para mulheres que, por motivos diversos, escolheram ou se viram diante da necessidade de viver longe de seus países de origem?
Foi possível tecer breves perguntas a mulheres que vivem em Lisboa. Ao todo, trazemos as percepções de mulheres que, vindas de Angola, Chile, Colômbia e do Brasil (incluindo eu), estão aqui por motivos e projetos de vida diversos. A todas elas, agradeço imenso o gesto generoso dessa partilha. As origens, trajetórias, idades e experiências de vida muito distintas não foi impedimento para se alinhavar, à maneira de um diálogo, os pontos em comum e também as singularidades na convivencia com a pandemia.
Uma primeira convergência de percepções diz respeito ao modo como as medidas de contingência foram tratadas pelo 22º Governo Constitucional, que tem na presidência o Partido Social Democrata, de centro à direita, representado pelo Marcelo Rebelo de Sousa e como Primeiro Ministro António Costa, Secretário Geral do Partido Socialista. A abordagem governamental visava garantir as restrições necessárias à contenção da contaminação e, ao mesmo tempo, assegurar o bem-estar e os direitos básicos para todas as pessoas – entre portugueses natos, cidadãos e residentes com vistos diversos.
Dentre as medidas tomadas destacam-se o confinamento, porém com direito a circular para se realizar compras, exercícios físicos próximos de casa e passear com animais. As Juntas de Freguesia montaram um esquema para realizar compras e fazer entregas para as pessoas com dificuldades de locomoção, com sintomas de coronavirus e/ou com doenças graves, como diabetes etc, além de garantir apoio psicológico. Tais medidas se devem ao fato de haver muitas pessoas idosas e/ou que residem sozinhas na cidade. Atividades de atendimento ao público foram suspensas, seguido de auxílio para pessoas em situação mais precária.
O impacto do confinamento tem sido avaliado a cada 15 dias e, quando se mostra necessário, como na última semana, o governo toma medidas mais restritivas para coibir a contaminação. Cumpre, assim, o que considero um compromisso, afirmado em cadeia nacional no início de maio. Ao anunciar a reabertura gradual dos serviços, António Costa disse à imprensa: “não teremos vergonha; se for preciso, voltaremos a ter medidas restritivas”.
Segundo a jovem publicitária Nicole Chattin, chilena que reside há cerca de um ano em Lisboa, “como estrangeira senti-me ‘salva’ pelas medidas do sistema de segurança social. Em termos de saúde o período de confinamento não foi tão longo como em outros países”. Sua opinião é compartilhada por todas as demais, como expressa Alice Amâncio, do Maracatu Baque Mulher, vinculado ao Maracatu Encanto do Pina, do Recife: “me senti preservada por estar vivendo aqui, pelas políticas que a gente viveu aqui, de fechamento e reabertura gradual e faseada”.
Porém, as medidas tomadas em Portugal não têm sido suficientes para conter os problemas potencializados pela pandemia, como o fechamento de empreendimentos e a redução de postos de trabalho. O impacto é ainda mais grave, quando se trata de imigrantes que vêm de países de África, por exemplo, como nos conta a estudante angolana, Beatriz Tendequele: “Muita gente perdeu seus empregos, está sem trabalho. Há muita gente que não sabia como alimentar-se… Muitos estrangeiros tiveram que deixar o país e voltar pras suas terras por conta de suas dificuldades e por causa do desemprego.”
Em paralelo, a situação na América Latina vai se tornando cada dia mais grave. E o sentimento de segurança que por vezes sentimos como imigrantes se contrapõe à aflição dada a situação em países como o Brasil, Chile e Colômbia. Alice Amâncio relata ter ficado “preocupada com meus amigos, minha família que estão no Brasil, até hoje sem nenhuma política apropriada, de preservação das pessoas”. A jornalista Carla Denise destaca como uma das principais causas dessa situação “a irresponsabilidade do governo federal e de parte de alguns governos no âmbito estadual e municipal de fazer a gestão pública da pandemia”. Tatiana Lima, professora da Universidade Federal do Recôncavo Bahiano, em fase de pós-doc em Lisboa, alega que onde há iniciativas conjuntas de governos estaduais e municipais, como houve na Bahia, “não existe uma ação coordenada” ao nível federal. A má gestão das políticas públicas se faz presente também no Chile, onde “o sistema de saúde está colapsado”, segundo Nicole e na Colômbia, onde “o presidente aproveita a situação para baixar decretos”, critica Sílvia.
Mas nem só de aspectos negativos vive-se a experiência da pandemia. São diversos os relatos de que essa parada foi um tempo que permitiu experiências mais alargadas de retomada de contato com pessoas queridas – familiares e pessoas que fazem parte de nossos antigos e novos círculos de amizade e convivência – e com o exercício coletivo da política; tempo para refletir sobre a dor e a alegria de ser o que se é e buscar o cuidado de si e dos outros.
Os depoimentos são vários: como o de Tati Lima, que sonhava em estar nas ruas no dia 25 de abril, comemorando mais um aniversário da Revolução dos Cravos e que, diante dessa impossibilidade, somou-se ao chamado para tocar o hino da revolução, Grândola Vila Morena. A política atravessou esses tempos: desde o dia internacional da mulher à comovente manifestação antifascista e antirracista que atravessou bairros onde há massiva presença de migrantes, como o meu próprio.
O convívio familiar e com amigos/as, que propicia maior proximidade e as trocas de afetos é ressaltado por Beatriz como um dos principais pontos positivos da pandemia e que também está associado com outras práticas que representam o cuidado estendido. Isso pode ser percebido em relatos como o de Sílvia, depois de quase 20 anos, “pela primeira vez tive tanto tempo com os meus pais. Eles adoraram”, na história de Nicole, que aproveitou o confinamento para “começar a cozinhar, aproximar-me das pessoas que tinha ao meu lado, tomar conta de minha alimentação e tentar aprender coisas novas”.
Mas o mergulho no convívio familiar, quando imposto de fora para dentro, é uma via de mão dupla, feita de bons momentos, mas também de cansaço e esgotamento, que constituem desafios a serem superados, reflete Carla Denise. Ao mesmo tempo, ela destaca o uso das redes sociais digitais como um artefato que propiciou proximidade com pessoas que se encontram à distância.
Vivi o tempo do confinamento ao mesmo tempo em que me encontrava às voltas com tudo o que uma mudança de país implica: nova moradia, novas companheiras de casa, novas amizades, emissão de documentação e início do doutorado. Assim, foi um tempo de estabelecer rotinas que haviam se esfumaçado meses antes. Com alegria posso afirmar que essa retomada de rotina foi atravessada por partilhas várias – que iam de novos sabores e modos de cozinhar às reflexões sobre a vida, permeadas pela contação e escuta de histórias -, mas também a possibilidade de me dedicar com afinco aos estudos, sem abandonar a deriva na cidade deserta ou a chance de fruição das mudanças primaveris. Práticas despretensiosas e banais que ajudam a serenar o pensamento, a alimentar os afetos que mantemos em diferentes lugares e a dedicar atenção a situações de pessoas que experimentam cotidiano a injustiça social, agora potencializada pela pandemia.
Já para Filomena Chiaradia, investigadora de Patrimônio do Rossio, no Teatro Maria II, “esse tempo de estar parada, se ouvir, se percebendo mais – porque você está menos distraída para você mesma – me fez voltar para a psicanálise de maneira muito preciosa. […]o que vai me fazer olhar essa pandemia com outros olhos, com um olhar diferente e transformador foi esse movimento, que não é fácil, porque a psicanálise exige que você coloque o dedo na ferida, e se você já está ferida, como é que você vai colocar o dedo na ferida? Mas… é cura. É a necessidade de cura dessa ferida”.
O desejo e o movimento em direção da cura das dores é o que permite a reestruturação de si num vai e vem entre o individual e o coletivo. São movimentos que encontram eco nas palavras de Alice Amâncio, para quem o tempo da pandemia em Portugal permitiu “um reencontro ou um repensar de coisas que eram tidas como óbvias: o tipo de contato com as pessoas, rotina diária, o que a gente poderia ou não fazer, a responsabilidade coletiva, auto-preservação e preservação do outro e eu diria que foi mesmo essa transformação”.
E por falar em transformação, creio ser possível frisar duas lições importantes desse estágio de confinamento a partir da experiência em Portugal. Uma delas encontra-se na ideia de que realizar estado de emergência para combater pandemias não é a mesma coisa que estado de sítio. É possível implementar medidas restritivas garantindo direitos. E a segunda lição: as mobilizações antirracistas e antifascitas que correram o mundo no último mês nos ensinam: manter acesa a chama da indignação alimentada pelo sentimento de empatia e o senso de justiça é fundamental para se derrubar as cercas/barreiras que cerceiam a liberdade e impedem a justiça social. Abrem, portanto, novos diálogos, com o 25 de Abril e tantas outras revoluções que a precederam e que estão por vir.
Por isso, com pandemia ou sem pandemia: #forabolsonaro #blacklivesmatter #feministantifascista
Ofereço Grândola Vila Morena.
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*Márcia Larangeira é jornalista e pesquisadora feminista. Doutoranda em Estudos de Cultura e Comunicação na Universidade de Lisboa, com foco em cidades e culturas visuais.
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