Noticias

Mulheres migrantes em tempos de coronavírus, 7º episódio

Uma experiência em trânsito.

*Por Heike Friedhoff, em colaboração à coluna da Carla Batista.

Estava a viver com minha família em Maputo, capital de Moçambique, quando foi anunciado oficialmente, no dia 22 de março, o primeiro caso de covid-19 no país. Uma semana depois, no dia 30 de março, o Diário Oficial publicava o Decreto de Emergência para o território nacional durante todo o mês de abril, com medidas como suspensão de vistos de entrada e cancelamento dos já emitidos; quarentena domiciliar em casos específicos, como viagens e pessoas infectadas ou com suspeita de infecção, entre outros. Esse estado de emergência viria a ser prorrogado diversas vezes, cumprindo o máximo de 120 dias estabelecido pela lei. No entanto, a infecção continua a se disseminar no país e novo decreto foi publicado para o período entre 05 de agosto e 06 de setembro.

É importante lembrar que a covid-19 chega a Moçambique praticamente um ano depois de os Ciclones IDAI e Kenneth terem devastado a região central e norte do país, além de países vizinhos, como Zimbabwe e Malawi. Isso significa que a pandemia tem afetado um processo de reconstrução das estruturas e da vida cotidiana no país, ainda não concluído. Estive bastante envolvida junto ao Gmpis – Grupo de Mulheres de Partilha de Ideias de Sofala e com a rede solidária internacional que se formou na realização de uma campanha de apoio às mulheres moçambicanas nos territórios afetados. As ações de recuperação tiveram que ser interrompidas pela chegada da covid-19 e o Gmpis focou na sensibilização e prevenção da pandemia.

Uma das questões que observamos tem sido a disseminação da ideia, pelas redes sociais, de que a pandemia de coronavirus é uma “doença de brancos” e que, portanto, a população negra – originária e majoritária no país – estaria imune. Situações como essas são muito inquietantes: há pessoas que espalham “teorias da conspiração” e fake news, e se negam a contribuir com a prevenção de forma solidária ao bem de todos/as, por exemplo, não usando máscaras e não respeitando distâncias.

Para confrontar situações como essas, as ações de solidariedade entre as mulheres do centro e sul de Moçambique tomaram novas feições. O Gmpis realizou debates de rádio em língua portuguesa e nas línguas locais e passou a percorrer espaços públicos, com megafones, para sensibilizar a população sobre os riscos e formas de contaminação por corona, desmentir essas fake news e estimular ações preventivas. Ao mesmo tempo, deu início à produção e distribuição gratuita de máscaras e material de higiene para mulheres pobres. Com as doações de material, feitas por pessoas amigas e com pequenos projetos de financiamento, essa iniciativa está sendo realizada na província de Sofala, região central do país, e em alguns municípios (lá chamados de distritos) nas províncias de Maputo, Gaza e Inhambane, onde há núcleos do Gmpis. É um trabalho importante, porém é preocupante saber que as ações de solidariedade alcançam poucas mulheres quando muitas estão sofrendo.

Esses episódios dão a ver a situação de incertezas e limitações que ali vivemos ao passo que arrumávamos nossa mudança para Nairóbi, Quênia, onde meu marido, Thomas, iria assumir um novo posto de trabalho pela Agência de cooperação alemã GIZ. A previsão inicial era de que sairíamos do país no final de maio. Mas como o contexto e as medidas preventivas mudavam constantemente, achamos por bem desmontar logo a nossa casa. Isto ocorreu em meados de março. Assim, estávamos “acampados” na casa até nossa suposta partida em meados de maio: nossa mobília, então, se resumia a dois colchões, três bancos, uma mesa, pratos, copos, talheres e panelas suficientes para fazer as refeições.

As escolas fecharam de um dia para outro por causa do decreto presidencial e para minha filha Naia, que tem nove anos, não foi possível despedir-se das suas amigas e professores/as da escola, o que causou uma grande tristeza, pois ela já sentia que não ia revê-las antes da saída do país. Naia ficou em casa atendendo às aulas virtuais e meu marido e eu ficamos em home office. Para evitar apanhar o vírus, pedimos à nossa empregada doméstica, Sandra, para ficar em sua própria casa.  O fato de ter minha filha o dia inteiro em casa e ter que fazer o trabalho doméstico, nos exigiu uma reorganização da vida reprodutiva em geral.

A minha mãe, que reside na Alemanha, é idosa e pertence ao grupo de risco, ficou internada duas vezes enquanto estávamos ainda em Moçambique, com a suspeita de covid-19. Isso fazia com que me sentisse  muito impotente, sabendo que nada poderia fazer para estar perto dela.  Viajar de uma hora para outra, se fosse necessário, era impossível porque já não havia mais vôos regulares. A sorte foi que mantínhamos uma comunicação frequente via WhatsApp e felizmente foi uma pneumonia “normal” e não corona. Ela se recuperou aos poucos e hoje está bem.

A nossa saída de Moçambique, prevista para o final de maio, foi antecipada para o dia 10 de maio por causa das regras de quarentena na Alemanha. Foi a nossa sorte porque pegamos, literalmente, o último vôo autorizado antes do fechamento dos aeroportos em Moçambique e deixamos o país com a Ethiopian Airlines. A foto em que aparecemos em frente ao aeroporto, pedimos a um senhor desconhecido para registrar. Um marco do “até um dia” que acenamos ao país que nos acolheu durante os últimos seis anos. Foi um pouco triste ter que sair sem poder se despedir das amigas e amigos. Mas as amigas de Moçambique me surpreenderam com um “aceno” virtual muito lindo: montaram um vídeo onde várias pessoas que já conhecia há muito tempo e outras que conheci no decorrer dos seis anos, e mandaram mensagens falando da nossa amizade e convivência. Foi muito emocionante e assim levo as lembranças comigo!

A viagem para a Europa foi bem estranha: como havia poucos vôos de conexão, precisaríamos ficar 24 horas em isolamento num hotel em Addis Abeba. No trajeto do aeroporto para lá, fomos escoltados pelo exército  e não poderíamos sair do quarto do hotel em hipótese alguma. Eu já tinha me informado sobre  as formalidades que precisaríamos fazer ao  desembarcar na Alemanha, mas chegando lá, ninguém nos registrou ou pediu quaisquer informações: nem de onde vínhamos nem para onde íamos. Fiquei muito surpresa com isto. Pelos relatos e notícias, pensava que na Alemanha estaria tudo muito bem organizado em relação às medidas de prevenção ao corona, porque o número de casos era relativamente baixo em comparação com outro países.

Tínhamos planejado de passar as nossas férias na Europa antes de começar a nossa nova etapa de vida no Quênia e conseguimos visitar as nossas famílias na Alemanha e Espanha. A nossa viagem para Quênia já foi adiada duas vezes e as últimas semanas foram bastante intensas porque significava que precisaríamos procurar uma moradia em curto prazo, o que não seria nada fácil. A minha filha já começou o ensino virtual na nova escola do Quênia, o que é um desafio porque só conhece os professores/as e alunos/as virtualmente.

Com a pandemia, mais uma vez, vejo como somos privilegiados por ter a liberdade e as condições financeiras de viajar para outro país no momento que a situação aí estava mais estável. A grande maioria das pessoas, em especial as mulheres, não têm a possibilidade de tomar decisões como essa; tampouco, têm as condições econômicas necessárias para viver dignamente sob a ameaça do vírus. A desigualdade ficou muito mais visível e acentuada ainda nestes tempos de corona, independente do país.

A pandemia me ensinou a ser ainda mais flexível do que era, a planejar as decisões para períodos curtos imaginando vários cenários, criando plano A, B e, às vezes, plano C. Por outro lado, essa situação demanda bastante energia, pois o futuro além das próximas duas semanas fica muito incerto. Isto é mais desafiante ainda quando envolve também crianças, que precisam da nossa segurança e tranquilidade para se sentirem equilibradas.

Nesse período, lidamos com sentimentos muito diversos e, por vezes, conflitantes: é uma boa experiência viver com pouco, estar mais tempo com a família e desacelerar o ritmo do trabalho. Por outro lado, traz tristeza e preocupação ter que lidar com um contexto de instabilidade mundial que afeta todas as pessoas de um modo ou de outro e, mais grave ainda, de maneira desigual. Que iniciativas podemos partilhar para, juntos/as, construirmos saídas para essa situação?

Contar com um lugar para nos abrigar e com recursos financeiros suficientes significa que estamos sendo cuidados e temos segurança financeira; o que não temos é a segurança de saber aonde vamos estar daqui a duas semanas ou mais. Lidar com todas essas questões é um desafio: em alguns momentos, te deixa nervosa e te torna impaciente com as crianças e com outras pessoas. Mas também te deixa fortalecida por perceber que temos conseguido viver com um conjunto de situações tão diversas. Nesse contexto, reconhecemos também a importância da nossa rede de amizades e a família que nos têm acolhido e apoiado em tudo que se faz necessário.

Passados seis meses, ainda estamos “em trânsito”, no aguardo da autorização para irmos para o Quênia. Essa experiência de transitoriedade não é nova, porque já havíamos feito isso antes, quando saímos do Brasil para Moçambique. O novo é que nada pode ser planejado e, mesmo assim, você tem que programar aonde vai dar continuidade à sua vida, organizar logística, cuidar da criança que precisa atender à escola, essas coisas…

Estamos conseguindo aproveitar o momento atual, fazer passeios, ver amigas e amigos, inclusive pessoas que ficaram “encalhadas” em Berlim por causa do corona. Continuo apoiando as iniciativas do nosso grupo de mulheres em Moçambique no que tem sido possível fazer à distancia, porque afinal, mesmo estando longe, prevalece o nosso lema: mexeu com uma, mexeu com todas!

____________

*Heike Friedhoff é antropóloga, consultora para Cooperação Internacional e ativista do movimento de mulheres. Morou no Brasil por, aproximadamente, 15 anos (entre 1998 e 2013), a maior parte do tempo no Recife, mas também em Brasília e Belém, onde nasceu sua filha Naia. Nos últimos seis anos residiu nas cidades da Beira e de Maputo, em Moçambique.

Crédito das fotos: 1) Heike com Naia e Thomas em Maputo – autor desconhecido; 2) Mulheres fazendo ação educativa – Acervo Gmpis; 3) Mulher fazendo contas da produção de máscaras – Acervo Gmpis.

A editoria da série “Mulheres migrantes em tempos de coronavírus – Um caleidoscópio de experiências” é da jornalista e pesquisadora Márcia Larangeira, a quem Mulheres em Movimento agradece a parceria.

Relacionado:

Mulheres migrantes em tempos de coronavírus, 5º episódio

Mulheres migrantes em tempos de coronavírus, 3º episódio

 

Mulheres migrantes em tempos de coronavírus

Mulheres migrantes em Lisboa: um caleidoscópio de experiências em tempos de pandemia