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Mulheres migrantes em tempos de coronavírus, 3º episódio

O caleidoscópio de experiências amplia leituras da pandemia a partir de Berlim.

Por Carla Guagliardi*, em colaboração à coluna da Carla Batista.

A pandemia foi detectada na Alemanha um pouco antes de chegar ao Brasil. As providências imediatas que foram tomadas por aqui já demonstravam o grau de maturidade de uma eficiente política social.

Em Berlim, cidade onde vivo, não houve propriamente a necessidade de um bloqueio social total, mas uma recomendação para que a população só saísse em caso de necessidade extrema, mantendo o distanciamento social, o uso de máscara, a higienização constante das mãos e a proibição de ajuntamento de mais de duas pessoas. Essas primeiras medidas foram relativamente bem recebidas e obedecidas, especialmente por ter o atual governo uma grande empatia e sensibilidade aos problemas da população.

Dentre as muitas medidas adotadas, uma – imediata e relevante – foi a desburocratização na liberação de benefícios financeiros aos trabalhadores e trabalhadoras autônomos/as e às pequenas empresas. Essa ajuda não somente beneficiou aos trabalhadores/as como à manutenção do funcionamento da economia de pequeno porte. Apesar disso, houve perdas irreparáveis e muitos pequenos negócios tiveram que fechar.

Na macroeconomia, grandes perdas se deram, mas as ajudas foram e estão sendo providenciadas graças a financiamentos públicos substanciais. O risco é grande, mas a confiança também.

É claro que não se pode comparar a robustez da economia alemã com a brasileira, mas no atual momento é possível perceber que nossos problemas não são apenas econômicos, mas também ideológicos – o que, infelizmente, afeta de forma trágica todos os setores da nossa sociedade.

Do meu ponto de vista, a distância geográfica não diminui em nada a inquietação que isso gera em nós, brasileiras que vivemos noutros países. Sem dúvida, corremos menos riscos por aqui na Alemanha, mas percebo que uma crise dessa dimensão enfatiza, e muito, a percepção do quanto somos interdependentes em todo o mundo – o que inclui não só a humanidade, mas todo o ecossistema.

Um aspecto positivo seria que essa consciência de coexistência vem crescendo e se expandindo de forma espetacular através das ferramentas midiáticas. Apesar de tantos desastres e de tantas perdas, há uma democratização da informação através de um sem número de depoimentos, videoconferências, disponibilizações de filmes e entrevistas, criando uma rede de conversas globais sem precedentes.

Essas tecnologias também nos permitem a manifestação dos afetos, fazendo com que, em tempos de isolamento físico, possamos encurtar distâncias por meio de uma comunicação com rapidez e baixo custo, muitas vezes com chamadas com vídeo e há até quem festeje seu aniversário com bolo e parabéns virtual!

Pessoalmente, adotei a chamada de Skype sem vídeo (por enquanto) para me comunicar diariamente com minha mãe, que obedece à quarentena sozinha no Rio de Janeiro enquanto eu estou do outro lado do Atlântico, na Alemanha. Essas chamadas diárias, que por vezes chegam a durar quase duas horas, foram se tornando muito especiais pela condição imposta durante a pandemia. Nosso cotidiano, tornado mais reduzido de novidades, interioriza a vida e é capaz de tornar as conversas menos convencionais. Minha mãe não usa a internet, mas tem uma memória fabulosa, assim mesclamos assuntos surpreendentes. Há algumas semanas, por exemplo, enquanto conversávamos, eu comecei a procurar a árvore genealógica dela num site e me deparei com fatos incríveis. Eu ia descrevendo os achados e ela complementava os fatos com suas fantásticas histórias. Descobrimos até que o avô dela foi secretário da presidência da república no governo de Delfim Moreira, período em que o Brasil foi afligido pela gripe espanhola. Esse detalhe ela desconhecia, mas o assunto trouxe diversos outros à tona. As conversas se aprofundam de maneiras bem diferentes das que temos pessoalmente, num ritmo próprio, com escuta ativa e numa forma de intimidade muito singular, que reforça o cuidado mútuo.

Experiências como essa fazem um contraponto com uma triste realidade. Infelizmente, é notório que o uso das ferramentas digitais haja também riscos, contradições e manipulações extremas como as fake news, desnorteando usuários/as.

Vivemos hoje esses tempos que contêm tanto essas sofisticadas possibilidades tecnológicas que podem beneficiar enormemente a vida quanto uma ética enfraquecida e necrófila minando nossa civilidade.

Em meus trabalhos artísticos vi surgir ao longo dos últimos anos questões como vulnerabilidade, equilíbrios precários e interdependência. É interessante observar a atualidade e urgência desses conceitos no contexto atual, apesar de toda a subjetividade neles implicada.

A instalação que escolhi para ilustrar essas questões vem de uma série onde o ar e o tempo são elementos constituintes do trabalho, muito embora “invisíveis”. Muitas vezes comentando esses conceitos usei (quase que premonitoriamente) a ideia de que ao respirar e ao falar estamos inevitavelmente fazendo trocas desse elemento fundamental.

Acrescentaria aqui a esse estado de interdependência, aquilo que se torna um valor na vida: a sua precariedade, a vulnerabilidade a que estamos sujeitos. Seria nessa ambivalência das incertezas que a invisibilidade nos torna algo.

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*Carla Guagliardi é brasileira, artista plástica, reside entre Berlim e Rio de Janeiro. A instalação “O lugar que eu respiro /Es atmet mich” – 2006 (tubos de cobre interconectados, balões de látex, ar e tempo), são de sua autoria. As fotos que ilustram a coluna são de Thomas Florschuetz, da obra de Carla Guagliardi.

**A editoria da série “Mulheres migrantes em tempos de coronavírus – Um caleidoscópio de experiências” é da jornalista e pesquisadora Márcia Larangeira, a quem Mulheres em Movimento agradece a parceria.

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