Para fazer frente a nova ofensiva do governo contra o direito ao aborto, feministas, sociedade civil e movimentos sociais se articularam. Será acionado o Alerta Feminista, mecanismo criado em momentos de graves ataques a direitos reprodutivos.
Por SOS Corpo, na coluna Baderna Feminista.
A luta por direito foi e é a luta para instalar direitos ou desmontar privilégios. O estado moderno, no seu arcabouço jurídico-político expressa a correlação de forças em dado momento conjuntural e define quem tem direito, quais são estes direitos e quem decide quem tem tais direitos. Portanto muitos segmentos e lutas populares conflitam-se com as leis vigentes nos estados modernos. Com a luta feminista não é diferente, seja a luta sufragista seja a luta pela legalização do aborto. As mulheres mantém-se há muitos séculos em conflito com a lei punitiva desta prática milenar, tão presente na vida das mulheres quanto a gravidez, o parto e a amamentação.
O silêncio ou omissão ao tema da legalização do aborto expressa como os direitos sexuais e reprodutivos continuam não sendo parte do programa eleitoral de partidos e candidaturas diversas. Mas, foi prática recorrente denunciada por anos, a troca de votos por ligadura de trompas em período eleitoral e nas eleições de 2018, muitas fake news usaram e abusaram de temas da sexualidade e aborto.
Frequentemente a criminalização do aborto é mais usada pela direita, e agora a ultradireita fundamentalista, com fins de representar a candidatura como moralmente idôneo, temente a Deus, defensor da família e da tradição. É o feminismo que reponde apontando a hipocrisia de muitos/as parlamentares terem casos de aborto nas suas próprias famílias, às vezes para manter as boas aparências das mesmas. Para candidaturas à esquerda, afirmar o direito à autonomia das mulheres ou autodeterminação sobre a reprodução, ou ainda, tomar o aborto como questão de foro íntimo, é sempre risco de linchamento em debates e campanhas adversárias. Nas eleições passadas, qualquer tema controverso ficou associado à ideologia marxista de esquerda, tornando bem-sucedida o estratagema de retirar votos da centro-esquerda progressistas e puxar setores para o discurso reacionário em termos morais.
Em 2020, percebe-se que a luta pelo direito ao aborto instala importante possibilidade de conflito progressista no contexto pré-eleitoral, e isto por força dos casos recentes de tentativa de bloquear o atendimento público aos casos hoje previstos em lei. O debate está posto. Em 28 de setembro, Dia Latino-americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto, comemora-se, desde 1990, a resistência e luta feminista em torno deste objetivo. Instituída no Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe realizado na Argentina naquele ano, a data é marcada pela ação das mulheres em por protestos, denúncias, entrevistas, ações nas ruas e nas redes sociais.
Este ano no Brasil, o debate e as disputas jurídico-políticas em torno dos serviços de aborto legal ocupam a pauta desde o mês de agosto, quando do caso de uma criança, grávida por estupro cometido pelo tio. A criança foi impedida de receber atendimento no seu estado, o que gerou uma complexa operação interinstitucional para garantir seu direito legal, que só foi possível com a transferência da criança, acompanhada de sua avó, ao Recife, cidade onde um serviço hospitalar universitário realizou o procedimento. A operação articulou Ministérios Públicos, Secretarias de Saúde, Defensorias Públicas e Conselhos Profissionais sem, entretanto, desvelar o quanto o conflito está instalado nos próprios serviços, dada a presença e intervenção crescente de profissionais de saúde comprometidos com a perspectiva religiosa fundamentalista que atua para impedir o aborto em quaisquer circunstâncias. O episódio envolveu até o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que enviou ao Espírito Santo uma equipe de assessores que, segundo denúncias, pressionou a família para que ela recuasse da busca pelo direito ao aborto para a menina. O conflito envolveu as famílias, a vítima do estupro, lideranças religiosas, imprensa, juízes, promotores/as, médicos, enfermeiras, influenciadoras/es digitais, demonstrando como a política de criminalização do aborto impacta negativamente a vida das mulheres.
Ainda em agosto, o Ministério da Saúde decretou a portaria nº 2.282/2020, que foi lida por segmentos do feminismo e outros setores da sociedade como uma retaliação ao direito garantido no caso da menina do Espírito Santo, mas, também, como continuidade da nova estratégia de criminalização total do aborto no Brasil: os ataques aos serviços de aborto legal. Estes serviços são, na realidade, serviços de atenção às mulheres vítimas de violência, o que inclui a violência sexual e, portanto, a possibilidade de aborto legal prevista em lei desde 1940. Ocorre que pela via legislativa e judiciária, o feminismo angariou ampla solidariedade contra o desmonte dos direitos ao aborto hoje existentes no Brasil (quando existe risco de vida da pessoa gestante, por estupro e em casos de feto anencéfalo).
Desde o Fora Cunha (2015) e a Campanha contra o Estatuto do Nascituro (“Estuprador não é pai”), diferentes bancadas no Congresso viram-se às voltas com este conflito e a vitória reacionária demonstrou o absurdo: a sociedade e a maior parte de homens e mulheres parlamentares nas comissões e subcomissões não fecham acordo. Há resistência de avançar contra uma possibilidade para as mulheres que, nestas situações, têm na interrupção voluntária da gravidez, a única possibilidade de livrar-se de um sofrimento ou risco iminente de morte. Antepor a vida das mulheres ao feto ainda em formação em seu corpo é inaceitável para muita gente. Mas para nós, trata-se dos não nascidos estarem acima das mulheres já nascidas, vivas e muitas já exercendo a maternidade. Trata-se, nitidamente, de desconhecer a humanidade de nós mulheres e reconhecendo vida onde ela ainda não é possível de ser sustentada por si só, fora do corpo que engravidou.
Mas, nem o aborto por estupro, nem o aborto nos outros dois casos previstos no Brasil, são os únicos onde a maternidade é impossível. Para a maioria das mulheres que se veem às voltas com uma gravidez indesejada, manter esta gravidez é motivo de grande dor e sofrimento, pela impossibilidade de desenvolverem vínculo materno e exercer a maternagem durante a gestação, ela mesma, objeto de repulsa.
São múltiplas as situações pelas quais as mulheres abortam: por serem muitos jovens ou muito velhas (questão de saúde e momento do seu próprio ciclo de vida), por estarem desempregadas ou em novo trabalho (problema do mercado de trabalho), por serem muito pobres (questão da concentração ou desigualdade de renda), por trabalharem demais e não sobrar tempo para conviver com os filhos que já têm (questão da sobrecarga, dupla jornada e superexploração), por não terem com quem deixá-los (pela falta de creches e outras políticas, pela não partilha dos cuidados pelos companheiros e familiares próximos), por razões morais (culpa, para proteger relação fora do casamento ou com homem casado, ou proteger uma autoridade masculina – da comunidade, da religião, da política, com a qual se envolveu e da qual engravidou), por vergonha de ir à escola grávida e, não menos importante, por não ter acesso e conhecimento às formas de contracepção ou porque, simplesmente, o método de contracepção falhou (todos eles falham, com diferentes taxas indicadas nas bulas, mas, essa circunstância, nunca é lembrada pelos profissionais, nos serviços de planejamento reprodutivo. Quantas sabem que o uso de antibiótico pode inibir e fazer falhar a pílula?).
É por estas e outras que a luta pelo direito ao aborto tem centralidade na luta feminista por transformação social. A maternidade, para ser livremente eleita pelas mulheres, impõe mais do que mudanças legais. Exige transformação nas jornadas de trabalho, na proteção social, no lugar para as crianças na vida de adultos e comunidades, outros tempos de convívio doméstico e familiar nos territórios do viver. Envolve ainda, outra compreensão do lugar das mulheres no mundo, superando a identidade de mulher como destino e construindo outra divisão sexual, racial e social do trabalho. Envolve, enfim, a conquista e luta por justiça reprodutiva, condições de ter e criar filhos/as e vê-los/as crescer e sobreviver com futuro.
Nas últimas semanas, dezenas de manifestações públicas foram feitas por diferentes setores e, no caso da Portaria 2.282 do Ministério da Saúde, além de notas, iniciativas de judicialização foram tomadas como, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) com Pedido de Liminar apresentada ao Superior Tribunal Federal (STF) pelo PT, PCdoB, PSB, PSOL e PDT; a Ação Direta de Inconstitucionalidade com medida liminar, apresentada ao STF pelo Instituto Brasileiro das Organizações Sociais de Saúde (IBROSS); a Ação Civil Pública contra a União Federal, apresentada pela Defensoria Pública da União juntamente às Defensorias Públicas estaduais de 10 estados e do Distrito Federal.
As mobilizações contra a Portaria também chegaram ao Congresso Nacional, a exemplo da nota de repúdio assinada por 333 organizações da sociedade civil e 16 apoiadores institucionais, entregue ao presidente da Câmara dos Deputados. Também se posicionaram pedindo a revogação da portaria, a Comissão Nacional Especializada de Violência Sexual e Interrupção Gestacional Prevista em Lei da FEBRASGO; a Rede Médica pelo Direito de Decidir (Global Doctors for Choice/Brasil); e a Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto. A polêmica em torno da Portaria do Ministério Público também repercutiu na mídia comercial e alternativa.
Toda esta movimentação de organizações da sociedade civil ganha grandes proporções com a denúncia coletiva que será lançada com o Alerta Feminista. Documento elaborado por várias organizações e coletivos que compõem a Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto, o Alerta foi um mecanismo articulado pelo movimento feminista brasileiro desde 2017, ano em que se intensificaram os ataques aos direitos reprodutivos das mulheres. Naquele ano, o Projeto de Lei 5.069/2013 previa a ampliação da tipificação do crime de aborto e retrocedia nos direitos adquiridos sobre atendimento às vítimas de violência sexual. O Alerta Feminista foi lançado também em 2019, quando o Projeto de Emenda Constitucional 181, que institui o direito à vida desde a concepção em detrimento à vida da pessoa gestante, entrou em tramitação no Congresso. Em 2020, o Alerta Feminista vem denunciar o aprofundamento do machismo institucionalizado nos poderes Executivo e Legislativo, com a ampliação de políticas de morte contra as mulheres, principalmente as negras e periféricas, e a população mais fragilizada.
Aberto para adesão de movimentos e organizações aliadas da luta pelos direitos das mulheres, o Alerta Feminista deste ano já conta com 120 organizações signatárias, número que deve se alargar significativamente até o dia 28 de setembro, dia que marca a Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto em todo o país e na América Latina. Estão previstos para acontecer em diferentes cidades brasileiras mobilizações nas ruas e um grande ato nas redes que denuncia todo o contexto aqui relatado. Por todo território nacional e diversos âmbitos de ação política em favor de direitos, estas organizações e partidos estarão às voltas com a complexidade dos processos políticos no governo da ultradireita neoliberal no país, o que pode dificultar a revogação da Portaria.
Acesse o Alerta Feminista na íntegra
Ao mesmo tempo em que vimos o apoio massivo ao direito da menina de São Mateus (ES) em realizar o procedimento do aborto legal, ficam os questionamentos se este apoio seguirá também para outros casos de aborto e se o movimento feminista brasileiro poderá ter também aliados no contexto das eleições municipais que se avizinham e que devem ter muita resistência do campo popular, mas também, pressão da política bolsonarista conservadora. Com as eleições municipais, ampliam-se os riscos de enraizamento da estratégia de bloqueio do debate sobre educação sexual nas escolas, sobretudo com o avanço da aplicação do projeto Escola Sem Partido, já aprovado em diversos estados brasileiros, através dos Planos Estaduais e Municipais de Educação. A este risco agrega-se ainda o bloqueio aos serviços de planejamento reprodutivo, uma vez que a Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos propõe, no lugar de políticas de planejamento e contracepção, uma campanha por abstinência sexual para adolescentes e jovens, desconsiderando que a maioria dos partos decorrentes de gravidez infantil resultam de estupro.
Este cenário, portanto, responsabiliza as meninas e adolescentes pela gestação, desobrigando o Estado, a família e a escola de ofertar educação sexual e reprodutiva e métodos de prevenção e contracepção à gravidez, além de inviabilizar o acesso aos serviços de aborto legal. Toda a ação de planejamento reprodutivo, pré-natal, parto e aborto é realizada pelo sistema SUS. Parte da atenção básica acontece sob gestão municipal, com alguns serviços de maior complexidade na responsabilidade dos governos estaduais. Portanto, as eleições municipais num contexto de avanço de candidaturas de representantes das forças fundamentalistas, ancoradas na política de morte bolsonarista, se traduzem em um real risco à vida de meninas e adolescentes e uma ameaça à autodeterminação das mulheres e das pessoas que engravidam.
É certo que as eleições municipais deste ano serão um grande termômetro de como o aprofundamento do ideário neofascista está capilarizado no país. As políticas de morte, que têm transparecido num total escárnio, em diferentes dimensões de gênero, de raça e de classe na vida social, bem como na política de preservação ambiental, na saúde pública, no aumento dos conflitos no campo e nas florestas, representa um desafio para nós, que lutamos pela transformação da realidade que está posta. A luta pela legalização do aborto no Brasil e na defesa dos direitos das mulheres também estão nesse meio e não podem mais servir de moeda de troca nas eleições. Só conseguiremos enfrentar o contexto que se aproxima logo mais se nos mantermos em aliança na defesa da vida e da democracia.