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Contra a criminalização das mulheres e pela legalização do aborto

NOTA DA FRENTE NACIONAL CONTRA A CRIMINALIZAÇÃO DAS MULHERES E PELA LEGALIZAÇÃO DO ABORTO PELA REVOGAÇÃO IMEDIATA DA PORTARIA 2282/2020/GM/MS

– Impõe mais dor e humilhação para meninas e mulheres vítimas de estupro

– Viola o código de ética sobre sigilo em saúde (Lei 10.778/2003)

– Condiciona o acesso ao aborto legal a notificação a autoridade policial

Vivenciamos um Brasil em que as violências e ataques contra a dignidade das meninas e mulheres vêm se aprofundando a cada dia, tanto pela ação quanto pela omissão do Estado brasileiro. A dura realidade a que meninas e mulheres, vítimas de violência sexual são submetidas para realizar um procedimento assegurado por Lei, ficou escancarada após o recente ocorrido com uma criança de 10 anos que, por quase metade de sua vida, fora violada por um parente próximo e teve o aborto legal negado em seu estado vendo-se obrigada a peregrinar pelo país em busca de um serviço de saúde que o realizasse.

Como se não bastasse os danos físicos e psicológicos resultados de quatro anos de violações, a criança teve seu nome e endereço expostos online por figuras públicas que se autodenominam “pró-vida” e “anti-aborto”, intimamente ligadas a Ministra da Família e dos Direitos Humanos Damares Alves. E, após ter seu direito ao aborto legal negado por um hospital público de Vitória, ao chegar em Pernambuco onde o procedimento foi realizado, teve novamente seu itinerário exposto publicamente. O ápice dessa violência contra a criança – violentada agora também pelo estado que lhe negou um direito -, se deu em frente ao serviço de saúde que a acolheu em Recife quando, convocados por parlamentares da Assembléia Legislativa de Pernambuco, novamente grupos fundamentalistas religiosos ligados a setores das igrejas católicas e evangélicas se aglomeraram em frente ao CISAM com o objetivo de impedir sua passagem, constranger a vítima e os profissionais de saúde.

O caso, que ganhou destaque na mídia pela sua crueldade e graças às denúncias feitas pelos movimentos feministas sobre a série de violações cometidas pelo Estado, reavivou o debate público sobre a importância do acesso aos serviços de aborto legal, da legalização do aborto e da laicidade do Estado, culminando poucos dias depois  com a publicação da Portaria 2.282/2020 pelo ministério da saúde.

A resposta do Ministério da Saúde ao sofrimento de meninas e mulheres no Brasil é a publicação de uma Portaria que normatiza a violência institucional nos serviços de atendimento às vítimas de violência sexual!

Ao invés de acolher e criar  formas de facilitar e suavizar o acesso das vítimas aos serviços de saúde, o Ministério da Saúde constrói mais barreiras, constrangimentos e violências ao publicar a Portaria nº 2.282/2020, uma nítida retaliação do Governo Federal, que trouxe novas orientações para o atendimento dos serviços de aborto legal tornando ainda mais tortuoso esse duro processo para as vítimas e ferindo diretamente a dignidade de meninas e mulheres que, mais uma vez, são atingidas pela mão pesada do próprio Estado.

A publicação da Portaria se coloca em contrariedade com os princípios do SUS de acolhimento e resolutividade, mas também e às normativas já existentes no âmbito do atendimento ao aborto previsto em Lei. É justamente no percurso dentro do serviço de saúde que a Portaria coloca barreiras e constrangimentos enormes para as vítimas, tentando  dissuadi-las a desistir de acessar seu direito, num momento de extrema vulnerabilidade e sofrimento: quando buscam o acolhimento de seu direito pelo Estado. Ao oferecer às vítimas que ouçam e visualizem o feto/embrião num ultrassom, além da notificação obrigatória à autoridade policial mesmo contra a vontade da vítima, são dois exemplos dessa violência a que podem ser submetidas a partir de agora.

A moral social e religiosa amedronta e coloca em risco as gestantes em processos de abortamento, mesmo que espontâneos! Morremos diariamente nas filas das maternidades por preconceito!

A negligência da sociedade em relação às violências que acometem principalmente as meninas e mulheres negras e empobrecidas é enorme. Mas, o Estado mostrar-se um avalista de tais violências é gravíssimo e uma expressão do caráter racista e sexista das violências institucionais. A Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e Pela Legalização do Aborto se coloca ao lado das vozes que defendem a dignidade e o direito ao acesso aos serviços de saúde pública  livres de discriminação de qualquer tipo, especialmente porque a maioria da população usuária do referido serviço é composta justamente pelos setores mais vulneráveis da sociedade.

Humanizar o atendimento a vítimas de violência sexual e prevenir a revitimização nos serviços de saúde pública é uma questão de justiça social!

Essa  recente Portaria é ainda uma afronta a  importantes marcos  que orientam o Estado brasileiro também no que tange à assistência à saúde das mulheres no Brasil,  e que sempre estiveram na base da elaboração de protocolos e normativas para que esse atendimento ocorra de forma organizada, humanizada, acolhedora.  Tais marcos, construídos através da incidências e participação do movimento de mulheres no país, junto aos acordos internacionais, provocaram um avanço ao colocar a realidade da violência contra as mulheres como tema de saúde pública, reivindicando políticas adequadas  para o acolhimento integral e humanizado ao aborto previsto em Lei nos serviços de saúde.

A criminalização do aborto no Brasil impõe barreiras morais e institucionais no acesso ao procedimento mesmo nos casos previstos em lei!

E foi nessa perspectiva que o então Ministério da Saúde – através de sua Área Técnica de Saúde das Mulheres – construiu as Normas Técnicas de Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes (1999); Aspectos Jurídicos do atendimento a vítimas de violência sexual (2005) e Atendimento humanizado ao abortamento (2005), atualizadas em 2011.

Essas normas técnicas e diretrizes buscam comprometer o Estado no seu dever com o direito à saúde, a não violência e a não discriminação. Orientam os serviços de saúde como responsável na realização de um direito existente mesmo antes da Constituição de 1988, como o direito ao aborto legal de 1940. São deveres reconhecidos nacional e internacionalmente. Por isso, não podem ser ignorados a cada mudança de governo ou de gestores porque seria instaurar uma insegurança permanente em área tão cara às mulheres: a saúde.

Conceitos como acolhimento, escuta sem julgamentos, não revitimização das mulheres, direito ao sigilo e respeito à sua autonomia são os que respaldam a não necessidade de um Boletim de Ocorrência para realização de qualquer procedimento. Porque saúde não é delegacia e a palavra da mulher deve bastar para assegurar o procedimento.

Não é possível tumultuar o debate democrático sobre o aborto no Brasil com artifícios normativos que confundem conceitos e compromissos firmados nacional e internacionalmente pelo Estado brasileiro. Não se pode aceitar a promoção da violência com o fim de silenciar o debate sobre o aborto.

Afirmamos que há no país uma aliança patriarcal, fundamentalista e reacionária contra a autonomia e os direitos reprodutivos das mulheres e, queremos relembrar ao Ministério da Saúde e ao estado brasileiro, que em seu artigo 196, a Constituição Brasileira de 1988 – primeiro marco regulatório de toda a política de saúde no Brasil – afirma que: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução dos riscos de doença e de outros agravos e o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. E, pautada por esse compromisso do Estado brasileiro, a Lei Orgânica de Saúde (Lei 8080/1990) diz que o “dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”.

Ao condicionar a assistência em saúde à comunicação externa do estupro à polícia, independentemente da vontade da vítima, o Ministério da Saúde viola a autonomia das mulheres, colocando-as em situação de suspeita e profissionais da equipe de saúde no lugar de policiais ou investigadores. Com isso, a referida portaria, também afronta a Lei 10.778/2003, que determina o dever  sigilo no atendimento a qualquer usuária ou usuário do SUS. Sim, a comunicação obrigatória de violência sexual realizada pelo serviço de saúde à polícia, sem o consentimento ou autorização da mulher, rompe com os princípios éticos profissionais, da afetividade e confiança que norteiam a relação entre profissional e usuária, edificada na capacidade de acolhimento, vinculação, responsabilidade e resolutividade que, por sua vez, são condições para a efetivação da atenção em saúde.

A notificação compulsória para casos de violência já existe! E tem como objetivo subsidiar políticas públicas de prevenção e não dar início a um processo penal contra a vontade da vítima!

Ao criar esses e outros processos dolorosos, o ministério nega ainda diretrizes que estabelecem que a saúde é direito fundamental e requisito para desenvolvimento social e econômico. O acesso universal e igualitário à saúde é norma constitucional e a interrupção da gravidez já há muito foi compreendida pelo SUS como uma questão de saúde pública.Negar ou dificultar o acesso ao aborto legal é uma violação dos direitos humanos das mulheres, é impedir uma  intervenção em saúde necessária e legal a uma violência vivida e, portanto, inconstitucional, além de negar e invisibilizar, uma dor que tem nome, tornando-se um tratamento cruel, desumano e degradante da própria dignidade.

Diante do acima exposto, a Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e Pela Legalização do Aborto, se soma a todas as instituições, redes, movimentos, associações profissionais e a tantas outras vozes que rechaçam esta portaria e defendem os serviços de aborto legal, reafirmando seu compromisso com a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, particularmente no que tange à livre decisão das mulheres de acesso à interrupção de uma gravidez  prevista em Lei. E exigir que:

Os princípios da laicidade, da equidade, da benevolência e não maledicência guie as políticas de saúde, tornando o SUS cada vez mais um equipamento público acessível, acolhedor e ciente de seu papel de cuidar da saúde e vida da população brasileira;

Os serviços de saúde atuem em compatibilidade com os direitos humanos das mulheres, a Constituição brasileira, a Lei Orgânica de Saúde e outras normativas que recomendam a igualdade e equidade entre homens e mulheres, a eliminação de toda espécie de violência, o respeito à autonomia, direito à privacidade/intimidade, confidencialidade, consentimento e escolha das mulheres;

Os serviços de aborto legal mantenham suas portas abertas para toda e qualquer mulher – criança, adolescente ou adulta -, facilitando seu acesso e tornando um pouco mais suave o sofrimento causado por um estupro ou por risco de morte;

A imediata revogação da Portaria 2282/2020, que introduz a tortura a mulheres e meninas usuárias do SUS, ao incluir vários processos dolorosos e violentadores para acesso ao aborto legal.

Nem pecadoras, nem criminosas! Pela vida das mulheres, legalizar o aborto já!

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