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Capital, pandemia e os papéis do feminismo

Ultraliberais querem decidir quem vive ou morre. A maioria -com raça, gênero e classe social segregadas- amarga o medo e a exclusão. É a necropolítica, descrita pelo filósofo Achile Mbembe. Mas a brecha da mudança foi aberta…

A rápida expansão da pandemia de coronavírus pelo mundo e a tragédia sanitária e socioeconômica por ela instalada nos coloca face a face com a profunda insegurança social em que o capitalismo jogou populações inteiras, as mais empobrecidas. Já ultrapassamos os 30.000 mortos e não temos condições de prever até onde vamos diante deste cenário de incertezas.

A outra questão impiedosa deste processo é a voz dos poderosos querendo transparecer como algo que nos afeta indistintamente, em termos de classe, gênero, raça/etnia. Isso é um mito. Em tempos de pandemias, as desigualdades se revelam em toda sua contradição e expõe as diferenças e desigualdades nas populações mais vulneráveis, social e economicamente. O confinamento tem sido possível para quem tem condições de fazê-lo. Mesmo na classe trabalhadora há diferenças. As trabalhadoras/es inseridas no mercado de trabalho formal, com cobertura e proteção social, vivenciam esse período de forma díspare que àquelas/es que vivem do trabalho informal ou que se encontram no campo dos serviços essenciais.

Para nós, no movimento feminista, esse contexto revela o colapso do sistema capitalista. Mas ele não cairá sem que hajam forças vivas a impulsionar a queda. Essa é a tarefa política que assumimos, e queremos construí-la junto com todos que sonham com um mundo de justiça e igualdade. A situação é assustadora para todo mundo hoje, mas, no passado recente, vivemos situações dramáticas provocadas pela sanha capitalista que atingiram grandes contingentes de pessoas e são invisibilizadas.

Há oito meses uma crise socioambiental, econômica e sanitária atingia o Brasil. Toneladas de petróleo cru contaminaram as praias de praticamente todo o litoral do país, modificando a dinâmica de vida de milhões de pescadoras e pescadores artesanais, causando danos à saúde de mulheres, homens e crianças que sobrevivem diretamente da renda da pesca artesanal. O vazamento do petróleo que vinha do alto-mar nunca teve sua origem definida. Quem teve um olhar mais atento e acompanhou esse crime, sabe que, como de praxe, o governo federal bolsonarista se absteve em ajudar na contenção do avanço do petróleo sobre a costa. Foram diretamente impactados estuários, arrecifes, mangues, praias e vidas marinhas a longo prazo, além das vidas humanas que foram completamente modificadas nos meses em que do alto-mar vinham ondas e ondas carregadas de material altamente tóxico e cancerígeno.

A crise evidenciou a falta de compromisso não só do governo federal, mas também dos governos estaduais, casas legislativas, prefeituras e demais instituições públicas em gerenciá-la. Todo o trabalho ficou nas mãos e nos braços das mulheres pescadoras, que organizaram suas comunidades pesqueiras para exigir dos poderes soluções para conter a degradação ambiental, para denunciar o impacto no trabalho da cadeia produtiva da pesca artesanal, na economia das famílias e das cidades atingidas, para exigir a democratização e melhorias no acesso à saúde pública, à previdência, aos direitos trabalhistas e para burlar a própria fome. Neste momento já era evidente que o impacto socioambiental tinha seu recorte de classe, raça e gênero e uma ação pública avessa a pensar políticas emergenciais e de mitigação.

No estado de Pernambuco, um dos que foram atingidos pelo derramamento, após mobilizações, atos, audiências públicas, reuniões com Secretarias e representações do Governo Estadual, as pescadoras e pescadores foram desrespeitadas, negligenciadas e entregues à própria sorte, já que decretar situação de emergência pública para conter a crise que estava instalada era assumir o risco de impactar a economia. Para preservar o lucro da indústria pesqueira e hoteleira, o governo seguiu como se nada estivesse acontecendo. Entre as vidas de milhares que estão doentes e passando fome, e o lucro dos grupos econômicos, devemos escolher a vida e vida com condições dignas.

De julho até hoje – agora em contexto de pandemia de Covid-19, as mulheres e homens do mar, na sua grande maioria negras e negros, remanescentes de comunidades tradicionais e quilombolas, pessoas que sempre estiveram e estão sistematicamente às margens do poder econômico – fica evidente, mais uma vez, a contradição do sistema capitalista, que não pode, jamais, ser visto, refletido e analisado sem suas engrenagens: os sistemas racista e patriarcal. Trazemos esse recente episódio de necropolítica dentre tantos outros que poderiam ser narrados para alertar: a dificuldade de controlar o coronavírus é a dificuldade de controlar o capitalismo.

Para o filósofo camaronês Achile Mbembe, necropolítica é a forma como os governos usam o poder para definir quem morre e quem vive, e de que maneira essas mortes e vidas acontecerão. No caso do crime sócio-econômico-ambiental do derramamento de petróleo, mais uma vez, a lógica neoliberal prevaleceu: as consequências do impacto econômico seriam maiores do que a “morte de cinco, sete mil pessoas”. O mesmo valeu para os crimes em Mariana e Brumadinho.

Mas porquê as vidas das pescadoras e pescadores, ou de milhares de mulheres assassinadas por feminicídio por ano, das centenas de mulheres negras que morrem nos hospitais em consequência de complicações em abortos clandestinos, ou de jovens negros mortos pelo genocídio da polícia nas comunidades periféricas, ou ainda, dos trabalhadores que se sacrificam em trabalhos análogos à escravidão, das pessoas encarceradas, ou das meninas que são vítimas de estupro em casa, não são exemplos suficientes para escancarar as contradições do sistema como agora? Porque, na crise do coronavírus, que chega em qualquer pessoa, independente de gênero, raça/etnia e classe social, se evidencia para todas as pessoas como a vida humano diante do capitalismo não vale nada. Mas, apesar disso, a vivência da pandemia segue tendo gênero, raça, etnia e classe.

Em recente entrevista, Achile Mbembe destaca: o isolamento social, principal medida sanitária adotada pelas autoridades para retardar o avanço do Covid-19, é uma forma de controlar esse poder de quem vive e de quem morre. Afinal, quem são os 40% da população mundial que está em isolamento, em termos de gênero, raça/etnia e classe social? Para quem vive no cotidiano, ao longo da história dessa humanidade, o isolamento social é um luxo para quem pode. E isso se revela, no contexto de crise, de maneira aguda, aquilo que se vive cronicamente no cotidiano.

Essa seletividade da pandemia se manifesta ainda nas informações veiculadas pelos grandes meios de comunicação. Os impactos entre mortos e infectados são explicitados pela centralidade do continente europeu e nos Estados Unidos. Mas, a pandemia já chegou no continente africano e atinge 39 países, com mais de 5.300 afetados e cerca de 170 mortos. Contudo, não vemos sendo divulgadas essas informações como parte do mapa da maior pandemia da história da humanidade. O poder de decidir dos governantes transparece também em quais vidas importam serem conhecidas.

Os efeitos da pandemia colocam mais uma vez em evidência quais são os corpos que estão em risco maior: mulheres e homens empobrecidos, em sua maioria negras e negros, trabalhadoras domésticas, diaristas, profissionais de saúde, trabalhadoras de serviços gerais, que sobrevivem da renda mínima conquistada com trabalho informal, moradoras de áreas de risco e suas famílias. Para que serviços essenciais continuem a funcionar, pessoas que sempre estiveram às margens do sistema-mundo capitalista-racista-patriarcal são colocadas em risco maior, pois seguem trabalhando nas ruas, para garantir o sustento.

A pandemia descortina de maneira gritante a fúria da superexploração capitalista no cotidiano. Empresas se recusam a liberar empregados e empregadas, obrigados e obrigadas a expor-se ao risco da contaminação. Outras aumentam o preço de medicamentos e materiais de proteção. Isso revela a falência de uma forma de organização social que se coloca em conflito com a vida. É exatamente por isto que as formas de contenção da epidemia nos colocam, necessariamente, em confronto com a lógica capitalista de organização social. O isolamento social exige colocar a saúde sobre a economia baseada na produção de bens e na venda de serviços. Evidencia que, neste sistema, seres humanos são força de trabalho descartáveis, em um mundo em que tantos e tantas estão desempregados.

O atual cenário revela também a insegurança social e econômica das pessoas que vivem do trabalho, provocada pelos 40 anos de implementação do neoliberalismo. Ele gerou o aprofundamento da acumulação por expropriação de bens comuns, a retirada dos direitos sociais e a conversão de políticas sociais em mercadorias, como a saúde, o abastecimento de água, a previdência social e moradia. A crise sanitária instalada revela, com toda a sua crueldade, a desproteção social, o desmonte dos sistemas públicos de saúde em várias partes do mundo e a insuficiência da ação do estado para responder prontamente ao crescimento do número de pessoas infectadas e adoecidas. O colapso da política de saúde no mundo é revelador deste sucateamento. Poucos leitos de UTI disponíveis; número reduzido de profissionais de saúde; desinvestimento em pesquisa e desestruturação de políticas e departamentos voltados para enfrentamento, de forma preventiva, de ciclos epidêmicos.

A luta pela contenção da epidemia revela, portanto, a urgência de conter o capitalismo: sua investida sobre recursos públicos, direitos e políticas. A pandemia de coronavírus exige, no plano imediato, no caso brasileiro, lutar pelo fim do contingenciamento de recursos, na ampliação e defesa do Sistema Único de Saúde, pelo acesso ao saneamento básico e à água e moradia. Exige também o enfrentamento ao lucro, a taxação das grandes fortunas e a defesa do fundo público para garantir a vida de todos. E exige do campo da esquerda, de maneira geral, colocar no centro de suas lutas o enfrentamento ao projeto ultraliberal e a defesa de políticas sociais universais que, frente à voracidade da tomada de recursos do Estado, assumem radicalidade e ganham potencialidade nesse contexto. Esta luta nos permite acumular forças para o enfrentamento do sistema.

Na contramão da lógica neoliberal e na disputa real do sentido de solidariedade, vemos, mais uma vez, as pessoas levando nas mãos as ajudas para aquelas e aqueles que são invisíveis neste sistema. Vem dos movimentos e organizações sociais e populares as iniciativas emergenciais para assistir populações e comunidades vulneráveis no cotidiano e que no contexto da crise sanitária do COVID-19 estão ainda mais fragilizadas. É importante destacar que as ações de solidariedade vem de um campo político que é extremamente atacado e criminalizado pelas forças conservadoras e neofascistas, que contribuíram para o atual quadro político em curso.

São campanhas de arrecadação que dependem de iniciativas individuais, de pequenos comerciantes, de pessoas que já sabem qual é o peso da escassez dos recursos e riquezas acumuladas pelo capital. Mas, o vírus vem chegando e do ponto de vista dos valores e da nossa forma de viver, o individualismo neoliberal e a ideia “do cada um e cada uma por si” não cabe mais neste momento, não se sustenta. Precisamos radicalizar e pressionar o poder público, fortalecer as redes de solidariedade que existem, fomentar novas, fiscalizar e cobrar que os serviços que são da ordem do Estado sejam mantidos e as vidas das pessoas que, de fato, estão em risco diante dessa pandemia, sejam protegidas. Precisamos entender que o tempo é o agora.

Precisamos, todas e todos, compreender que o andamento do ano 2020 como conhecíamos foi interrompido. E o que há de surgir deve ser à partir da vontade do povo, da classe que vive do trabalho. E temos a consciência e exemplos mais que evidentes de quem são os nossos inimigos. O corona é um vírus, a pandemia é o capitalismo racista e patriarcal.

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