Tendo no horizonte a chegada às 100 mil mortes por Covid-19 no Brasil e o cenário de um território devastado pelo bolsonarismo nas eleições de 2022, precisamos fortalecer uma coalizão progressista para a derrubada o governo Bolsonaro e Mourão. O tempo é agora.
Por SOSCorpo, publicado originlmente para a coluna Baderna Feminsita no site Outras Palavras em 10/07/2020 | Ilustração: Stephanie Pollo
Por diferentes meios, vozes políticas ergueram-se nas semanas recentes contra a desrazão e impossibilidade do governo Bolsonaro dar alguma resposta segura de proteção à vida no Brasil. O horizonte de chegarmos ao marco de 100 mil mortes pela COVID-19 é a mais escancarada demonstração da indisposição da coalizão de forças no poder em colocar-se a serviço do bem-estar e proteção da população brasileira, ou, pelo menos, de sua maior parte, preta e pobre.
As mesmas vozes ergueram-se também cada vez que militares colocaram-se, ou foram colocados, como força garantidora do presidente, ele mesmo um militar. O fantasma de mudança de regime para uma ditadura aberta, nos assombra. Muita gente, parte do eleitorado, interpela o presidente sobre o compromisso com uma “nova política” e a defesa do povo e da democracia.
Sabemos que o programa ultraneoliberal e entreguista é o compromisso desta coalizão no poder. Programa que despreza a vida e cujos agentes se contrapõe à democracia com apoio das corporações transnacionais e agentes da financeirização. Este é o compromisso da coalizão de forças no poder desde o golpe de 2016, ação política que arquitetaram e impuseram à época usando outros representantes e personagens.
O programa avançou ali e avança agora, seja como “boiada” a fazer passar mais facilmente em meio a tragédia; seja como “reformas necessárias” à recuperação econômica; ou ainda como “política de austeridade” em contraposição ao que foi apontando como “gastos irresponsáveis” de governos passados. Pior, o programa avança sob ameaça e riscos de crescente autoritarismo do Estado policial em que nos constituímos.
O que não avança, ou avança com dificuldade, é o consenso entre quem está na oposição aberta e quem começa a contestar e contradizer este governo agora, na Pandemia do Coronavírus. Se para alguns livrar-se de Bolsonaro, e a sua repulsiva atitude estética, é suficiente, para outras, há que livrar-se do governo no seu todo. Livrar-se da chapa – pela crescente militarização do executivo federal e proximidade com crime organizado das milícias. Livrar-se do programa – que põe à beira do abismo a democracia instável que produzimos e desmonta de forma veloz e voraz o imperfeito arcabouço jurídico de garantia de direitos que construímos e conquistamos desde a saída da última ditadura (1964-1985). O abismo está à nossa frente. A defesa da vida e da democracia é o chamamento.
É no abismo onde poderá estar um próximo governo de coalizão progressista, com todas as pessoas, tendo diante de si um território devastado, restritas possibilidades de efetivar políticas de justiça social, antipatriarcais, antirracistas e com igualdade de gênero, com enorme pobreza e fome à nossa volta e entre nós. Mas, há temor e vacilo em somar forças para encerrar este governo, o que pode nos levar a ter que sobreviver, cada dia em pior situação, esperando uma incerta vitória eleitoral em 2022. Lembremos: Temer foi mantido dois anos no poder contra a absurda rejeição de 97% da população por esta mesma coalizão de forças que elegeu Bolsonaro e Mourão. Por que não atuaria para sustentar seu programa mais uma vez?
Mas, para além das diferenças sobre “do que é mesmo que queremos nos livrar?”, há em uma parte da população organizada o problema da aposta na democracia liberal, centrada em vitórias eleitorais, e há, em outra parte da população também organizada, desconfiança com a ordem democrática. Quem acreditaria e se deixaria encantar por uma chamada de defesa desta democracia? Esta que vivenciamos há 30 anos e que deu ‘nisso que está aí’? Sim é esta democracia, estruturada como nosso sistema político, que permitiu o golpe institucional, permitiu a permanência no cargo eletivo de um parlamentar que defende ditadura e torturadores e mesmo assim fosse candidato à presidência (?!?), democracia que torna longo o tempo de julgamento de cassação de chapas, mesmo quando CPMIs e inquéritos apontam para as provas de crimes eleitorais praticados pela chapa Bolsonaro-Mourão e seus apoiadores.
Como seguiremos lutando e aglutinando forças pela democracia, se no século XVIII a proposta da democracia correspondia ao interesse da burguesia europeia, que ao mesmo tempo desenvolvia a terrível experiência da racialização, tráfico e escravidão de milhões de pessoas negras? Como se ao início do século XX, as lutas sufragistas apontavam as contradições da mesma democracia, revelando a exclusão de metade da população, nós mulheres, de sua dinâmica de poder? Como se esse sentido liberal burguês é o que hegemoniza o sentido da democracia e das suas expressões políticas em grande parte do mundo?
Porque mesmo de forma restrita, a perspectiva liberal burguesa de democracia deixou legados valiosos que perduram e precisam ser defendidos: a ideia de pluralismo partidário, o direito de expressão das minorias e os direitos e garantias individuais. Porque a outra perspectiva, da tradição ‘soberania popular’, nos legou o voto universal e mecanismos de participação direta por exemplo, abrindo possibilidades de melhor representação das vontades de minorias políticas. E porque, acima de tudo, é preciso alargar a concepção de democracia com mais ampla partilha de poder para além da forma política.
É preciso alargar – e muito – os modos de representação legítima nas instituições do Estado, democratizar o poder judiciário e colocá-lo também sobre controle social e reformar o sistema eleitoral e partidário. Somos dos poucos países em todo o mundo a votar em pessoas e não em programas e listas partidárias, nem combinamos estas opções de voto. Por aqui, partidos tornam-se “legendas de aluguel”. As formas de democracia direta estão tuteladas e a participação junto a governos executivos na gestão de políticas estão descredenciadas pelos governantes. É preciso alargar a democracia política com medidas de ações afirmativas no tocante à classe, à questão racial e étnica, gênero e geração para democratizar os espaços de poder. Alargar a democracia para acolher em nosso Estado modos de vida e de governo ancestrais e vivos, como dos povos indígenas.
É apenas na democracia e com liberdades democráticas, mesmo sob constante ameaça, que podemos vivenciar a livre associação, a livre expressão, o direito de greve, o direito de protesto, o direito de contradizer a autoridade do Estado, podemos tentar avançar na democratização do estado. É em momentos mais democráticos quando temos garantias de poder agir, de forma democrática, para mudar as regras do jogo, agir para transformar as relações sociais entre grupos populacionais com interesses muito diversos, muitas vezes antagônicos.
Seguimos pela democracia porque movimentos como o feminismo, alargaram ainda mais a restrita democracia política, propondo e ganhando adesão em defesa da democracia como forma de convivência justa e igualitária entre as pessoas, na casa, na família, no partido, no sindicato, na associação comunitária. Nesta perspectiva, tomamos a democracia como oposição à dominação e submissão de uma pessoa mulher à vontade de outro ser, um homem.
Porque o feminismo é sujeito constitutivo, junto com outros sujeitos políticos, do alargamento dos referencias da ‘questão democrática’, problema que se refere não apenas à relações de poder no sistema político mas, a forma geral da vida desejável nas relações de poder em sociedade: respeito às diversidades de formas de economia, respeito às pessoas em sua diversidade e singularidades. Garantia de direitos iguais, econômicos, ambientais, culturais e sociais. Redistribuição de riquezas, todas, na sua origem, fruto do trabalho, ou melhor dizendo, da exploração do trabalho alheio. Porque é preciso democracia para defender e garantir a vida, do planeta, das pessoas e da natureza.
A perspectiva de democracia que hoje estamos chamadas/os a defender e construir é esta: associada a justiça, reivindicada fortemente pelos movimentos sociais, é antirracista, como demanda e denuncia a luta do povo negro; é horizontal nas práticas democráticas decisórias como movimentos feministas demandam há anos; é autonomista e contra qualquer ordem opressora, como nos apontam juventudes em várias partes do mundo.
É preciso muita ação, participação, engajamento, expressão pública de nossas discordâncias e críticas. Portanto, é preciso muita democracia, para formar maiorias contrárias e de forma ativa, a este governo e seu programa.
No momento presente, é preciso fazer muita balbúrdia para destruir o pensamento de ódio aos outros simplesmente por serem outros. É preciso firmeza ao defender o justo, somar com atos concretos na luta por políticas em favor de justiça e igualdade. É preciso ser solidário de fato, muito além do círculo restrito de amizade e da família de cada um. Ver a humanidade no rosto de todo mundo, ser socialmente solidário apoiando, por exemplo, taxação de grandes fortunas, para redistribuir riquezas. Frente a coalizão de forças no poder, para que ‘viva o povo brasileiro’, sejamos Baderna!