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Ativismo feminista e solidariedade

Mulheres moçambicanas traçam caminhos para superação de crises.

Por: Carla Gisele Batista*.

Em março do ano passado, após o ciclone IDAI ter atingido a África, o portal Folha PE publicou, em apoio ao Grupo de Mulheres de Partilha de Ideias de Sofala moçambicanas (GMPIS) o artigo “Mexeu com uma mexeu com todas”.

Duas militantes feministas que integraram o grupo que articulou a campanha de apoio às vítimas do IDAI contam abaixo como este apoio foi recebido e potencializado em iniciativas protagonizadas pelas mulheres. As perdas da catástrofe ainda não foram totalmente superadas e o mundo se vê diante dos desafios  impostos pela COVID-19.

Neste momento o GMPIS está promovendo algumas açõoes para prevenir o Coronavírus:

– Programas de rádio e transmissão através de megafones nas comunidades para sensibiliacao sobre o que é o Coronavirus, como se prevenir e como este impacta na vida das mulheres e jovens;

– Indicação de contatos telefônicos dos membros do GMPIS e do governo para onde denunciar violencia doméstica;

– Apoio com produtos de limpeza e suplementos alimentares para mulheres que fazem parte dos grupos de risco, com sensibilizacao das próprias mulheres na hora da entrega dos produtos.

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O que a solidariedade e o ativismo feminista têm a nos ensinar sobre enfrentamento ao câmbio climático?

Heike Friedhoff e Márcia Larangeira**

O impacto das mudanças climáticas na vida é uma realidade cada vez mais frequente em diferentes partes do mundo. Entre as populações mais afetadas, as mulheres destacam-se, devido às responsabilidades que assumem na sociedademem relação aos cuidados com a família, agravadas que são pelas relações desiguais de gênero, sendo essa uma situação que não pode passar desapercebida ou ser negada.

A experiência com o Ciclone IDAI, que em 2019 devastou a região central de Moçambique e países vizinhos, como o Zimbabwe, é uma situação emblemática do que acabamos de afirmar.

Em regiões onde as desigualdades de gênero são muito agudas, caso de Moçambique, muitas meninas não são ensinadas a subir em árvores nem a nadar, o que poderia salvar suas vidas em situações de emergência, como testemunha Lídia Mubango, membro do GMPIS em Buzi: “Só quatro dias depois do ciclone chegou alguma ajuda em Buzi e só quem sabia nadar podia apanhar a comida que um helicóptero lançou na água. Quem sabe nadar na maioria das vezes são os homens”. Trata-se de um retrato vivo e recente daquilo que vários estudos, realizados em diferentes partes do mundo, têm apontado: que além de exercerem funções fundamentais à manutenção da vida cotidiana durante e após as catástrofes ambientais, elas morrem mais cedo e com mais frequência do que os homens.

Nas zonas rurais, onde a principal fonte de informação é a rádio local, os aparelhos de rádio costumam ser propriedade dos homens, de modo que eles são informados primeiro. Se a notícia demora a circular, as mulheres, muitas vezes, as recebem muito mais tarde. Estas situações, apesar de parecerem banais, são exemplos de algumas das restrições que colocam em risco a vida das meninas e das mulheres.

Para compreender melhor essa situação, vamos rememorar o que aconteceu em Moçambique.

No dia 14 de Março de 2019 a região central de Moçambique foi severamente destruída pelo Ciclone IDAI e subsequentes inundações, causando a morte de centenas de pessoas e fazendo com que outras centenas de milhares perdessem todo o seu sustento. A capital provincial da Beira ficou isolada do resto do país durante dias, os alimentos eram escassos e doenças como a malária e a cólera espalharam-se. O distrito de Buzi ficou completamente submerso e as pessoas esperavam dias em árvores e telhados para serem resgatadas. “Mesmo muito cansadas, no dia depois do ciclone paramos de pensar nas nossas casas e famílias e saímos para ajudar as nossas companheiras!” nos conta Inês Chifinha, coordenadora do GMPIS na Beira.

No dia seguinte, ainda em meio ao caos, as ativistas do GMPIS – muitas das quais tinham sofrido grandes perdas materiais -, começaram a procurar outras mulheres, criando uma rede de ajuda àquelas que se encontravam em situações ainda mais graves. A busca não durou muito: em pouco tempo, foi possível identificar um grande número de mulheres que necessitavam de apoio urgente. Uma comissão formada por dez ativistas se dedicou a estabelecer as prioridades, considerando a escassez dos recursos obtidos pela ajuda humanitária. Os segmentos priorizados foram: mulheres muito pobres com muitas crianças; mães solteiras; mulheres idosas; mulheres com deficiência e meninas com irmãos que haviam perdido seus pais no ciclone.

Com a ajuda de ativistas feministas de Maputo e do Brasil, foi criada uma campanha que criou uma plataforma digital de crowdfunding, com ampla difusão nas redes sociais digitais para mobilizar recursos internacionais. Aos poucos, essa iniciativa – chamada ‘Mexeu com uma, mexeu com todas” – angariou solidariedade em vários cantos do mundo. “Nós não podemos ser apenas espectadores!, argumenta uma das pessoas sensibilizadas, L. Kirshner. E M. Haas valoriza o fato de que “as doações vão diretamente para uma organização local respeitável”.

Assim, muitas pessoas se reuniram, em países diferentes, para realizar pequenas iniciativas para angariar fundos, tais como a venda de bolos, na Bélgica, e a realização de concertos beneficentes, na Áustria e no Brasil. Na Alemanha, estudantes de uma escola doaram suas mesadas e organizaram um evento durante o festival de verão escolar para ampliar a sua contribuição.

Foram angariados recursos significativos, principalmente no espaço de quatro meses seguintes ao ciclone, ainda que tenham chegado recursos pontuais ao longo de mais um semestre! Além disso, o GMPIS recebeu outros tipos de apoio, por meio de projetos de ajuda emergêncial de várias organizações. Um doador do Rio de Janeiro, com experiência em ações humanitárias e programas de estímulo ao desenvolvimento de comunidades vulneráveis e empobrecidas, destacou “a força e a criatividade que existem nessas comunidades, em especial nos grupos de mulheres nelas enraizadas”. E assegura: “ninguém melhor que elas poderia, naquele momento, fazer o melhor uso possível do dinheiro recebido. Ninguém melhor que elas conhecia a região afetada. Ninguém melhor que elas sabia quais eram as famílias que mais necessitavam de apoio”.

As mulheres que receberam as doações, usaram esse o dinheiro para comprar alimentos, utensílios domésticos, sementes e ferramentas agrícolas, materiais de construção, mas também materiais escolares e kits de higiene para meninas. Foram construídas novas casas para algumas mulheres mais velhas e para as jovens que tinham perdido seus filhos ou pais e suas casas durante o ciclone.. A entrega das doações era combinada com pequenas oficinas educativas onde as ativistas conversavam com as mulheres sobre as mudanças climáticas e seu impacto sobre a vida das mulheres.

Contudo, as ativistas encontraram algumas barreiras interpostas pelos homens: durante o processo de distribuição doações, alguns dos líderes comunitários reivindicaram alguns dos suprimentos para si, e defenderem que os produtos restantes fossem distribuídos com a mediação deles. Em paralelo a esse fato, mulheres e meninas que se encontravam nos abrigos eram abusadas sexualmente ao passo em que a comida que chegava através das ajudas de emergência de organizações estrangeiras era distribuída apenas em troca de serviços sexuais enquanto mulheres mais velhas e aquelas que têm algum tipo de deficiência, devido à sua condição de maior vulnerabilidade social, eram deixadas de mãos vazias. Esses são apenas alguns exemplos do conjunto de problemas enfrentados. Para fazer frente à essa situação, o GMPIS pediu uma audiência na Secretaria Permanente da Província de Sofala para chamar a atenção sobre estas violações. Desta forma, tanto os problemas enfrentados pelas mulheres como as ações do GMPIS ficaram visíveis e o governo pediu ao grupo para partilhar os mapeamentos das mulheres afetadas. O mapeamento foi entregue, porém, não foi utilizado pelo governo em nenhuma ação concreta para as mulheres afetadas.

Esse fato não esmoreceu o GMPIS. As ativistas prosseguiram em suas iniciativas, buscando também aliviar o sofrimento psicológico das mulheres afetadas. Com a colaboração de uma professora de psicologia da Universidade Católica receberam formação básica para encorajar as mulheres a falar sobre o seu sofrimento em conversas, tendo sido organizados fins-de-semana de terapia comunitária, onde todas tiveram oportunidade de desabafar e processar o que tinham vivenciado durante e após o ciclone em um ambiente seguro e tranquilo.

Como as Províncias de Manica e Tete também foram afetadas pelas inundações, o GMPIS decidiu repassar parte do dinheiro para as organizações parceiras do movimento de mulheres, em solidariedade com aquelas que lá residem: “nós não pedíamos coisas a mais para nos aproveitar do sofrimento das outras. Tudo foi entregue às mulheres afetadas”, relembra Cecília Ernesto, da LeMusica, parceira que atua em Manica.

Até agora, 1.817 mulheres e, portanto, um total de quase 9.100 pessoas foram beneficiadas, considerando-se um tamanho médio do agregado familiar de cinco pessoas. As medidas de ajuda ainda estão a ser implementadas. Para garantir a máxima transparência comunicados regulares sobre a implementação das medidas são feitos através da plataforma de doação e da página do GMPIS no Facebook.

No entanto, o trabalho das ativistas não termina com a implementação das medidas de emergência. Na fase atual é importante trazer os interesses das mulheres para o processo de reconstrução e desenvolver estratégias de adaptação e resiliência com vistas a novos desafios, como o do enfrentamento à covid-19. Aqui, ações nas áreas de treinamento e advocacia são particularmente necessárias para que o GMPIS tenha bons argumentos e estratégias para representar os interesses das mulheres.

O trabalho na base, realizado por organizações membros, uma formação feminista da qual várias ativistas participaram em 2018/19 e o processo conjunto de tomada de decisões sobre a utilização dos fundos de emergência contribuíram para a implementação eficiente das medidas de ajuda. O conhecimento de que pessoas do mundo inteiro estão a interessar-se pelo seu destino causou uma forte impressão nas mulheres e deu-lhes muita força na difícil situação. Os resultados dessa história são contados por elas mesmas, em um pequeno documentário, que pode ser acessado no link:

A quem contribuiu, os nossos agradecimentos. Continua aberta a campanha de solidariedade “Um ano IDAI – Mexeu com uma, mexeu com todas!”.  E oferecemos a você a música “menina do bairro” com a moçambicana Assa Matusse:

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*Carla Gisele Batista é historiadora, pesquisadora, educadora e feminista desde a década de 1990. Graduou-se em Licenciatura em História pela Universidade Federal de Pernambuco (1992) e fez mestrado em Estudos Interdisciplinares Sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela Universidade Federal da Bahia (2012). Atuou profissionalmente na organização SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia (1993 a 2009), como assessora da Secretaria Estadual de Política para Mulheres do estado da Bahia (2013) e como instrutora do Conselho dos Direitos das Mulheres de Cachoeira do Sul/RS (2015). Como militante, integrou as coordenações do Fórum de Mulheres de Pernambuco, da Articulação de Mulheres Brasileiras e da Articulación Feminista Marcosur. Integrou também o Comitê Latino Americano e do Caribe de Defesa dos Direitos das Mulheres (Cladem/Brasil). Já publicou textos em veículos como Justificando, Correio da Bahia, O Povo (de Cachoeira do Sul).

** Heike Friedhoff trabalha como consultora para a cooperação internacional em Moçambique. Márcia Larangeira é doutoranda em Estudos de Cultura na Universidade de Lisboa, viveu um ano em Moçambique trabalhando no Ministério de Género em Projeto de Cooperação Sul-Sul.