No Fórum Social Panamazônico, espaço ético-político denunciou graves violações aos territórios e corpos indígenas na região — em especial das mulheres. Em discussão, os ataques cometidos pelos governos do Brasil, Colômbia e Peru
Por SOS Corpo, para a coluna Baderna Feminista.
No dia 12 de novembro de 2020, durante a abertura do IX Encontro Internacional Virtual Fórum Social Panamazônico na Colômbia (FOSPA Colômbia 2020), foi lida a sentença das juízas do II Tribunal Ético de Justiça e de Direitos das Mulheres Andinas e Panamazônicas, demarcando a posição contrária do FOSPA e das mulheres às políticas neoliberais extrativistas na região. O Tribunal é uma iniciativa importante de articulação internacional dos movimentos de mulheres para denunciar casos emblemáticos de violações de direitos das mulheres e dos povos do Panamazônia, que ainda estão impunes pelo sistema patriarcal racista capitalista. Este ano, as graves situações vivenciadas pelas mulheres, em particular as indígenas, em seus territórios tradicionais e, as consequências das políticas predatórias dos governos do Brasil, Peru e Colômbia sobre esses povos, foram apresentadas para julgamento no dia 28 de outubro, num tribunal popular e feminista transmitido pela internet dentro da programação oficial do FOSPA 2020.
Os Tribunais de mulheres surgem com princípios fundamentais de serem espaços éticos-políticos para amplificar a voz das mulheres que vivem e sofrem os impactos do modelo predatório capitalista, patriarcal, racista e colonial e, permitem que as experiências das mulheres e as resistências dos movimentos nos territórios sejam articuladas a partir de causas comuns. Nas três denúncias, as testemunhas evidenciaram como a articulação entre o capital estrangeiro, os partidos políticos da direita e da ultradireita, as forças paramilitares e milicianas e o fundamentalismo religioso, são aliados em favor do avanço do agronegócio e dos megaempreendimentos sobre os territórios, a natureza e sobre os corpos e vidas das mulheres e suas comunidades.
As juízas concluíram o veredicto após analisar os casos de violações e o aumento da violência denunciados por mulheres de organizações indígenas, em articulação com movimentos feministas e de defesa dos Direitos Humanos nestes países. Os Tribunais Éticos têm sido uma experiência importante na trajetória de movimentos de mulheres, de amplificação de denúncias para a sociedade em geral, para os governos e, para os espaços de governança global, em torno dos impactos do modelo extrativista e predatório sobre os territórios e as mulheres, de maneira particular.
O Caso do Brasil
O testemunho do caso brasileiro, apresentado por Telma Taurepang, coordenadora da União de Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (UMIAB), organização que também integra a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e o Conselho de Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), teve o foco na denúncia da omissão por parte do governo Bolsonaro-Mourão em assistir os povos indígenas do Brasil durante a pandemia do coronavírus. A política de morte do Governo na gestão da saúde, também presente nas ações do Ministério Justiça e do Meio Ambiente, pela paralisação das demarcações das terras indígenas e flexibilização de leis de proteção ambiental dos territórios, aumentando as situações de violências contra as mulheres indígenas, foram alguns dos pontos da denúncia feita pela liderança brasileira.
“Hoje vivemos dentro do Brasil um genocídio contra os povos indígenas. O governo Bolsonaro chegou para nos tirar a liberdade de viver dentro de nossas próprias casas. Estamos enfrentando dentro do nosso território, a Amazônia, as queimadas, o desmatamento do nosso solo, nossas águas estão contaminadas, nos trazendo a fome. A invasão da grilagem e dos grandes projetos do agronegócio, a caça e a pesca predatória. A violência deste governo chegou voltada para os povos indígenas e atinge diretamente as mulheres. A pandemia chegou, o vírus chegou e hoje não temos sequer políticas voltadas aos povos indígenas”, denunciou Telma Taurepang, durante o seu testemunho para o Júri.
Telma, que vive na terra indígena Araçá, Comunidade Mangueira, na região de Amajari, em Roraima, fronteira com a Venezuela, também relatou os casos de violências físicas contra as mulheres indígenas. Há relatos de estupros, assédios, adoecimento mental e a superexploração do trabalho das mulheres. Ela denunciou, ainda, o aumento da criminalização das defensoras de direitos e lideranças indígenas, como a perseguição à Sônia Bone Guajajara, que têm sofrido ameaças por sua luta em denunciar o agravamento das condições de vida das populações indígenas brasileiras, “as mulheres indígenas estão sempre a combater a violência e a usurpação dos nossos direitos”, destacou.
O assassinato de Paulinho Guajajara no Maranhão, durante uma emboscada em 2019, também foi lembrado durante a audiência. A testemunha do caso brasileiro destacou ainda a lentidão da Justiça brasileira na apuração dos assassinatos de lideranças indígenas em conflitos nos territórios disputados pelo agronegócio e pelas empresas extrativistas, “a falta de respostas efetivas é também uma forma de massacre contra os nossos povos”.
O Caso da Colômbia
Para relatar o aprofundamento das situações de violação de direitos contra as mulheres e suas comunidades em territórios andinos, indígenas, quilombolas, campesinos e rurais, quatro testemunhas relataram o caso da Colômbia. Magali Belcazar Ortega,Jakeline Romero Epiayu e Waira Jacanamijoy da Plataforma Social y Politica para la Incidencia de las Mujeres del Caquetá, denunciaram o contexto de risco que as defensoras dos direitos dos povos e da vida, bem como suas famílias, têm sofrido por fazerem a resistência frente aos megaempreendimentos, ameaças que têm relação direta com o avanço de empresas transnacionais, de organizações do narcotráfico e de ações adotadas por partidos políticos tradicionais, que atendem aos interesses do grande capital estrangeiro.
“Há uma negação do governo colombiano em reconhecer esses ataques e de tomar medidas e garantias em defesa das vidas das lideranças que defendem os direitos dos povos e os territórios. De 2013 a 2019 foram 4.355 casos de violência, sendo 1.336 contra mulheres, ou seja, 31% dos casos. Em 2020, 27 defensoras já foram assassinadas, sendo 16 mulheres indígenas, rurais, quilombolas e camponesas”, relatou Magali Ortega, enfatizando que “defender o território e a terra constitui um risco que faz parte do contexto de globalização do sistema capitalista”. Naquele país, o aumento foi de 165% de ataques às mulheres que lutam.
A violação sistemática dos direitos socioambientais, sobretudo cometidos por empresas extrativistas de carvão, com o avanço da indústria extrativista sobre os territórios de preservação ambiental – a casa de diferentes etnias indígenas e campesinas, tem causado impactos substanciais na soberania alimentar dos povos, aumentando a precarização da vida de comunidades tradicionais panamazônicas. A exploração do carvão tem prejudicado o acesso à água por conta da contaminação dos rios e de reservas hídricas pelas empresas extrativistas. De acordo com o relatado por Jakeline Romero Epiayu, na região de La Guajira, “a exploração de carvão por empresas estrangeiras com o apoio do governo local tem causado conflitos com derramamento de sangue, degradação do meio ambiente, dos solos e das águas, comprometendo a nossa única fonte de água, que é o Rio Bruno”, o único rio que corta o território de La Guajira.
Na região sul de Caquetá, desde 2013 a comunidade indígena sofre assédios e invasões por parte de empresas que compõem o consórcio de construção da rodovia que liga os territórios da Bolívia, Equador, Colômbia e Venezuela. O projeto tem provocado desmatamento de áreas de preservação ambiental, degradação dos territórios e perturbação sonora produzida pelos sons estridentes das máquinas, motosserras e caminhões. Eles têm causado impactos na fauna local, solo, fontes hídricas e, têm modificado a dinâmica de vida das mulheres indígenas e suas comunidades.
“O projeto da rodovia tem ameaçado a vida das comunidades e a preservação dos territórios por impactar áreas que são vitais para a sobrevivência dos povos e da biodiversidade da região. Estamos em um processo de oposição ao projeto, liderado pelas mulheres, para dizer que não queremos que este projeto siga destruindo os nossos territórios, a nossa casa”, testemunhou às juízas, a ativista Waira Jacanamijoy.
Para mostrar como o projeto predatório capitalista colonial tem causado sofrimento às mulheres colombianas há muito tempo, a testemunha Luciana Aldana, da Corporación Jurídica Yira Castro, relatou o caso de violação de direitos contra as mulheres da comunidade de Parapeto del Magdalena, que sofrem as consequências de despejos forçados ocorridos entre os anos de 1996 a 2000, provocados por megaprojetos. A organização acompanha a peregrinação de 15 mulheres e suas famílias da associação de agricultoras de Parapeto, em busca de reparação.
“As pessoas que moravam na comunidade sofreram inúmeras violências por parte de grupos armados aliados de empresas, burocratas e partidos políticos que precisavam expulsar famílias de suas terras. Grupos paramilitares invadiram os territórios e expulsaram as famílias com o uso de violência física, patrimonial e psicológica, e do assassinato dos companheiros das mulheres, obrigando-as a saírem do local. Por medo, elas foram obrigadas a vender suas terras, que foram compradas por pessoas que faziam parte do Bloco Norte das Autodefesas da Colômbia”, relatou a defensora.
As mulheres de Parapeto del Magdalena tem se organizado para pedir a restituição das suas terras, denunciado todo o processo que revela as parcerias violentas e as alianças obscuras entre o poder político local, o capital estrangeiro e as forças paramilitares. Contudo, o processo segue parado na Justiça colombiana, que ainda não deu uma resposta efetiva, ignorando as graves denúncias feitas pelas vítimas. Assim como lembrado por Telma Taurepang ao denunciar o caso do Brasil, as mulheres colombianas sofrem uma nova violência ao não terem seus direitos garantidos pelo Estado e pela justiça de seus países.
O Caso do Peru
O testemunho de Teresa Cuñachi, liderança indígena do povo Awajún, da comunidade de Nazareth, região da amazônia peruana, relatou o crime socioambiental cometido pela empresa estatal PetroPerú, que em 2016, negligenciou o derramamento de óleo sobre o rio Chiriaco, principal fonte de subsistência de comunidades indígenas e ribeirinhas da região. De acordo com a liderança, mesmo com uma medida cautelar imposta pela Justiça peruana, até hoje a empresa não cumpriu a promessa de garantir assistência médica às pessoas que foram contaminadas pelo contato com cádmio, metal pesado altamente tóxico, substância presente no óleo. O derramamento contaminou as águas, o solo e o leito do rio. A falta de respeito à vida de milhares de pessoas tem causado a revolta das lideranças, que estão cansadas de esperar pela lentidão da justiça do país.
“Quando nós olhamos para a nossa situação, começamos a lutar, mesmo que ainda não sejamos ouvidas. Estamos nos organizando para sermos ouvidas. As crianças e as mães das famílias, as idosas, são as que mais têm sofrido com esse crime, porque com o derramamento, as pessoas que trabalhavam para a empresa disseram que não tinha perigo entrar em contato com óleo e muitas pessoas, por desconhecimento, acabaram adoecendo. Os impactos atingiram não só o nosso povo, mas todas as comunidades ribeirinhas rio abaixo. Apresentamos a nossa demanda, mas elas nem nos ouviram”, testemunhou a liderança Cuñachi, que integra ORPIAN – Perú, Organización Regional de Pueblos Indígenas de la Amazonía Norte del Perú.
O povo peruano, sobretudo as populações tradicionais e indígenas do país, têm sofrido ao longo dos últimos anos, as consequências da crise política provocada pela disputa de poder no governo. O país acaba de sofrer um novo golpe parlamentar pelas forças da ultradireita que, dessa vez, destituiu da presidência Martín Vizcarra, sob acusações de ter recebido propina de construtoras em trocas de vantagens em licitações públicas. O processo de vacância, que durou apenas dois meses de investigação, está sendo denunciado por movimentos sociais e populares do país como ilegítimo.
“Uma pessoa que não vive a nossa situação não sabe o sofrimento que é olhar para nossos filhos doentes, mal de saúde e não ter a quem recorrer por ajuda. Nós queremos perguntar: por que eles acham que os nossos direitos não valem? Somos humanos, somos irmãos peruanos, merecemos respeito e queremos que nossos direitos sejam respeitados, que nosso direito à vida seja respeitado. As empresas extrativistas estão avançando sob nossos territórios e não existe a consulta prévia aos povos, sobre as consequências que elas trazem. Quando nós nos posicionamos e reclamamos dessas invasões, eles nos tratam como se não conhecêssemos a lei”, enfatizou Teresa Cuñachi.
O Veredicto das Juízas
O corpo de juízas foi integrado por Ketty Marcelo López, liderança indígena do Povo Ashaninka, ex-presidenta da Organización Nacional de Mujeres Indígenas Andinas y Amazónicas del Perú (ONAMIAP) e coordenadora nacional da Organización de Mujeres Amazonicas Ashaninka de la Selva Central (OMIASEC); Laylor Vanessa García Gómez, advogada e mestranda em Estudos Amazônicos da Universidade Nacional da Colômbia (Colômbia), e Maria Betânia Ávila, pesquisadora e militante feminista da Articulação de Mulheres Brasileira, da Articulación Feminista Marcosur e uma das fundadoras do SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia (Brasil).
A sentença das juízas reconheceu que as graves violações de direitos constitucionais das mulheres, a expropriação e o ataque sistemático às vidas de mulheres que defendem a autonomia de seus territórios e de seus corpos, estão sendo cometidas pelos governos do Brasil, Colômbia e Peru, ao descumprirem os acordos e tratados internacionais. De acordo com as juízas, os estados devem respeitar os territórios dos povos indígenas amazônicos de acordo com os tratados e devem ampliar a legislação para que a justiça chegue às populações mais distantes.
Para elas, é fundamental a classificação dos efeitos causados pelas violações cometidas tanto pelos governos, quanto pela ação de empresas ou, que tenham sido realizadas por pessoas em favor de interesses externos, para que os agentes operadores da lei adotem medidas garantidoras de que situações, como as relatadas, não sejam novamente cometidas e, para determinar sanções aos responsáveis pelas violações. As juízas destacam ainda a importância das mulheres na preservação da vida dos povos e das condições da vida humana, do meio ambiente e do ecossistema como um todo.
Em todos os casos, confirma a sentença, as mulheres foram vítimas de violência e de violação de seus direitos garantidos em lei, por defenderem e se imporem diante de situações de enfrentamento à apropriação de seus corpos, seus primeiros territórios, e de suas terras, seus territórios de construção de vida, cultura e de coletividade, espaços vitais para a continuidade da existência de suas comunidades, do meio ambiente e dos bens essenciais à sobrevivência. Ainda de acordo com as juízas, os casos apresentados no Tribunal Ético, assim como muitos outros apresentados em tribunais oficiais nacionais e internacionais, possibilitam a constituição de uma espécie de “jurisprudência ética” que reconheça como os corpos e a vida das mulheres são usados de maneira sistemática pela violência patriarcal, racista e colonial, como alvos estratégicos “das formas de agressão à vida dos povos indígenas e comunidades tradicionais do continente”.
O II Tribunal Ético de Justiça e de Direitos para as Mulheres Andinas e Panamazônicas realizado no âmbito do IX Encontro Internacional FOSPA 2020 é um importante instrumento político de denúncia coletiva de violações que têm marcado a história das populações tradicionais do continente. Essa metodologia permite compartilhar a experiência de opressão, exploração e violação enfrentada por mulheres de diferentes territórios de existência e, as resistências sustentadas pelas mulheres, dando um importante peso político, simbólico e substancial para que os casos sejam repercutidos em outros espaços de incidência, articulação e denúncia nacional e internacional, a exemplo das audiências que investigam as violações de direitos humanos na Organização dos Estado Americanos (OEA), a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL) e a Organização das Nações Unidas (ONU).
O Fórum Social Panamazônico (FOSPA) surge a partir do Fórum Social Mundial de 2001, quando, na carta de princípios, as organizações e movimentos sociais do Brasil, Peru, Bolívia, Equador, Colômbia, Venezuela, República Cooperativa da Guiana, Suriname e Guiana, se articularam para construir um Fórum temático para compartilhar ações, reflexões e questões que atravessam os territórios da bacia amazônica. Desde a sua primeira edição em 2002, o FOSPA tem se consolidado como um espaço político fundamental para a resistência dos povos andinos e panamazônicos, que promova a participação política e a aliança entre movimentos sociais, redes e instituições da sociedade civil organizada destes países em torno da construção coletiva de resistência e, luta frente aos avanços do sistema colonial, racista, patriarcal e capitalista e do modelo predatório de desenvolvimento.
A presença das mulheres organizadas em movimentos nesses espaços é uma circunstância provocadora e, por assim dizer, enriquecedora de seus sentidos. Isso porque traz para o centro do debate os problemas suportados pelas mulheres amazônicas (em suas diversas formas de existir e variadas condições de desigualdade) que estruturam, eles mesmos, o modelo neodesenvolvimentista extrativista que assola a região, alargando as referências do debate para além dos impactos sobre os sujeitos vulnerabilizados, ao partir de uma visão também larga sobre os corpos (das mulheres) como territórios existências sobre os quais também se sustentam as desigualdades e violências. Os Tribunais Éticos de Mulheres são, para além de espaços de vocalização das mulheres, possibilidades concretas de escuta das subalternas que insistem em gritar. Não se pode atender ao chamado da Amazônia sem ouvir estas vozes.