O Caso Mariana Ferrer reitera como o estupro é naturalizado pela sociedade brasileira e cada dia mais chancelado pelas instituições públicas. Para fazer frente ao avanço conservador, o movimento feminista, mais uma vez, denuncia a violência patriarcal e racista contra as mulheres. Não vão nos calar.
Reprodução/Mídia Ninja. Por Analba Brazão.
Para desgosto de machistas como o jogador Robinho, denunciado por estupro coletivo, o movimento feminista existe. E se fortalece a cada dia. Antes não fôssemos tão necessárias, antes não houvesse a necessidade de organização para o enfrentamento de uma sociedade que segue não reconhecendo nossa vida como importante. Mas, se precisamos ainda lutar, seguimos fortes na contramão do silêncio de autoridades e instituições.
Foi este movimento que conseguiu, com sua luta diária, dar visibilidade à violência contra as mulheres. Numa tarefa que exigiu e exige estratégia: ações de luta, denuncia constante, performance, vigílias, velas, apitos, faixas, cartazes, murais e nossos corpos gritando palavras de ordem nas ruas. Seja “quem ama não mata”, seja “não existe estupro culposo”. Seguimos denunciando as mãos que apertam as gargantas das mulheres como se elas não tivessem direito à voz.
Uma luta permanente para quebrar as estruturas do patriarcado que utiliza a violência não apenas para nos dominar e submeter, mas para expressar as desigualdades de poder nas relações sociais entre os sexos.
Precisamos, entretanto, atentar a uma questão crucial: vivemos um contexto de emergência da violência racista sobre as mulheres. Os dados do Anuário de Segurança Pública de 2020 apontam, nos últimos anos, um progressivo aumento na violência praticada contra mulheres negras e pobres, revelando o quanto a articulação entre racismo e sexismo e pobreza se faz presente.
Todos os dias nos chegam notícias estarrecedoras de como o judiciário brasileiro tem demonstrado o quanto o machismo e o racismo estão impregnados nestas instituições.
Em setembro deste ano, nos deparamos com a notícia de que a primeira turma do Supremo Tribunal Federal acatou a manutenção da decisão do júri popular que absolveu um homem que tentou assassinar sua mulher sob o argumento de legítima defesa da honra. Esta tese, por décadas utilizada para absolver assassinos de mulheres, é respaldada pelo patriarcalismo que marca as instituições brasileiras, um país colonialista em que as mulheres só foram reconhecidas como sujeito de direitos tardiamente. Com muita luta e intensa mobilização, o movimento feminista refutou este argumento.
Quem não lembra da condenação de Doca Street, o assassino de Ângela Diniz, há mais de quarenta anos? É enorme retrocesso que uma argumentação que consente com o direito de um homem ferido de dispor da vida de uma mulher seja revigorada em 2020. O que mostra que as vítimas de crimes de gênero precisam, antes, desafiar o judiciário a repensar a naturalização da discriminação contra as mulheres e a superar a memória de seus erros.
Em dezembro de 2019, no estado do Amazonas, um juiz absolveu quatro acusados de estupro coletivo em uma adolescente de 15 anos de idade. Além de absolver, o magistrado solicitou que o Ministério Público investigasse a adolescente por calúnia. A jovem foi abusada durante 4 horas por estes 4 acusados, precisou fazer 3 cirurgias reparadoras em função da gravidade de seus ferimentos. O juiz ainda a desqualificou ao cogitar que ela teria sido responsável por organizar o “encontro sexual” como o juiz classificou.
Muito recentemente, em agosto deste ano, uma jovem de 19 anos sofreu um estupro coletivo por 4 homens na cidade de Acari. O juiz do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte considerou, mesmo com todas as provas, a acusação improcedente. A defesa argumentou que foi consentido por ela. Novamente a vítima é colocada no banco dos réus, numa inversão delirante de papéis que reitera que o estupro é uma norma aceitável em nossa sociedade sexista. Tão aceitável que a cidade de Acari recebeu os acusados com uma missa na igreja matriz “uma multidão se reuniu em frente a igreja matriz da cidade para rezar e agradecer o retorno dos suspeitos”, como anuncia a notícia do jornal.
Esta semana, nos deparamos com outra violência cometida também por este sistema de justiça: o caso da Mariana Ferrer. Graças ao movimento feminista, as denúncias se espalharam nas redes sociais e em menos de um dia um abaixo-assinado coletou 3 milhões de assinaturas, além da programação de manifestações em várias cidades do Brasil.
O acusado: André Aranha, membro de uma família influente e milionária de Santa Catarina. Uma defesa acusatória e desrespeitosa. Um Ministério Público que cogita ausência de dolo. E um juiz conivente com o assédio moral da vítima em plena audiência. Culminando com uma sentença que ignora as provas no aparente intuito de livrar um estuprador da cadeia. O que é estupro culposo senão uma estratégia para absolver um estuprador? O que foi, ou melhor, o que ainda é a argumentação da legitima defesa da honra, para absolver os matadores de mulheres? Como negar o reconhecimento do que seja a consensualidade?
Os casos de estupro no Brasil são alarmantes. Os dados do Anuário da Segurança Pública de 2020 demonstram isso. Como não se indignar quando temos estes dados demonstrando que a cada oito minutos ocorre um estupro no Brasil, e em 85% destes casos a vítima é do sexo feminino. Mulheres ao longo de toda a vida estão passíveis de estupro. Mesmo nos serviços de saúde e nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI) as mulheres não estão livres de serem estupradas. Um levantamento realizado pelo portal Intercept Brasil indica que de 2014 a 2019, em 10 estados brasileiros, mais de três mil mulheres foram estupradas nas unidades de saúde, um espaço que já procuram em estado de vulnerabilidade, buscando cuidado. Não existe lugar seguro para as mulheres.
Com todos estes dados alarmantes, como não se revoltar? Sentenças como as citadas acima nos mostram o quanto estamos respirando uma opressão da retomada conservadora que exime a violência contra nós mulheres. O que estes dados nos trazem é a demonstração de que o machismo que viola e mata todos os dias pode estar cada vez mais chancelado.
É nessa hora que o feminismo retoma seu espaço combativo, suas palavras de desordem e sua estratégia política que não descansa. Renova-se. Não vão nos calar!