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“A Princesa Isabel assinou nossa liberdade, mas não assinou nossas carteiras de trabalho”

A noite de quarta-feira, 14 de outubro, marcou o início do Diálogos Impertinentes, iniciativa do SOS Corpo que pretende trazer para o debate público, temas e questões-chaves que são imprescindíveis para qualquer sociedade que quer ser verdadeiramente democrática. Com base no diálogo, na experiência, na ação política e na fundamentação teórica, o Diálogos Impertinentes estreou trazendo para o centro do debate o Trabalho Doméstico no Brasil.

“O trabalho doméstico remunerado e não remunerado é fundamental para sustentar a sociedade. A economia se sustenta disso”, disse Creuza Oliveira, presidenta do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Bahia (Sindoméstico/BA) e ex-trabalhadora doméstica. Uma referência do movimento sindical das trabalhadoras domésticas, Creuza começou a trabalhar como doméstica ainda na infância e lembrou a herança escravocrata que as trabalhadoras da categoria sofre até os dias atuais em dimensões simbólicas, objetivas e materiais.

“Trabalho doméstico tem história e ela vem desde a casa grande. Muitas mulheres negras foram traficadas de várias partes da África e do mundo para trabalhar como escravas, tratadas de forma desumana. Com o processo histórico de organização, lutando através dos quilombos contra a escravidão, as mulheres e homens negros conseguiram a liberdade, mas continuam até hoje em trabalhos precarizados”, lembrou durante sua participação, e seguiu: ” A Princesa Isabel assinou nossa liberdade, mas não assinou nossas carteiras de trabalho”.

“As relações no trabalho doméstico são marcadas por desigualdades de classe, raça e gênero. Essa é a história da formação colonial brasileira, trabalho doméstico no coração da exploração de classes”, enfatizou a sindicalista.

Para dialogar com Creuza Oliveira em torno de questões histórico-políticas que são imprescindíveis e destacáveis no trabalho doméstico e na organização e na luta das trabalhadoras domésticas no Brasil, esteve Maria Betânia Ávila, educadora do SOS Corpo, que destacou as dimensões estruturantes que marcam a formação social brasileira e o papel mais que fundamental que o movimento feminista tem na luta das trabalhadoras domésticas.

“A luta das trabalhadoras domésticas é uma causa feminista e democrática. Está no âmago das relações de gênero, classe e raça, e também no âmago das questões de trabalho como estruturante dessas desigualdades”, comentou Betânia Ávila.

No 21 de outubro, Chirlene dos Santos, da Associação das Trabalhadoras Domésticas de Campina Grande (PB) e Verônica Ferreira (SOS Corpo) seguiram o fio dos Diálogos, centradas nas experiência das trabalhadoras domésticas, as condições sociais e contradições vividas nas relações de trabalho e na vida cotidiana – especialmente no atual contexto social de enfrentamento à pandemia do coronavírus que tem sido cruel com as mulheres, sobretudo as mulheres negras e das classes populares, a grande maioria trabalhadoras domésticas e informais.

A pressão de empregadores para a inclusão do trabalho doméstico no rol de atividades econômicas essenciais no período da quarentena e do lockdown em algumas cidades escancarou ainda mais as relações de servitude do emprego doméstico no Brasil. Chirlene dos Santos é trabalhadora doméstica diarista e foi dispensada e ficou sem trabalho e sem remuneração durante a pandemia. “Durante a pandemia o trabalho doméstico foi considerado essencial, mas que essencial é esse que não reconhece nossos direitos?”, questiona.

Verônica Ferreira complementou: “Vejam que contradição: o essencial foi colocado justamente para retirar o direito essencial de, num contexto de uma pandemia que coloca em risco a vida, de proteger a si mesma ficando em casa. Então essencial é o que? O essencial foi usado aí para negar os direitos que esses sim, são essenciais. Esses decretos são perversos em proibir proteger-se para tentar garantir o cotidiano de quem esse governo considera como essencial. Tudo que a gente discute como sistema de exploração ele vivido ali e se agrava”, refletiu a pesquisadora. São mais de 1 milhão de empregos perdidos com a desculpa da crise no contexto de pandemia, mas na verdade é a prática de classe racista e patriarcal que está sendo revelada nesse momento.

Chirlene lamenta que as trabalhadoras domésticas não sejam reconhecidas como uma categoria que gera lucros pro país, mas sonha em provar o contrário com uma greve de trabalho doméstico: “Ainda não teve greve das trabalhadoras domésticas, mas imagina uma greve dessas! Quantas outras atividades iriam ser afetadas? Quantas outras categorias iriam nos apoiar?” Verônica apoiou. Para ela o Trabalho domestico não é um legado da escravidão, ele é a continuidade dessa relação de exploração de corpos negros que acontece majoritariamente de maneira informal e ilegal.

O Diálogos Impertinentes foi uma série de lives realizadas às quartas-feiras, em outubro, compondo o calendário de atividades do Centro Cultural Feminista. Eles foram transmitidos em o canal no Youtube de SOS Corpo e pela sua página no Facebook e continuam disponíveis para acesso público. Você também  pode escutar em formato de áudio nos agregadores de podcast de sua preferência.