O trabalho das garotas que está na base da sustentação economica de uma cidade.
Por Carla Gisele Batista*
Elas eram em maioria meninas. Vi apenas uma senhora, talvez mais jovem que eu. Eram as guias de trekking em Sa Pa, norte do Vietnam. Usavam uma vestimenta bordada, característica da tribo Black Hmong, população nativa da região. Trouxe uma blusa pra mim, que foi impossível usar, porque era meio desconjuntada, apesar de lindíssima.
Não sei se a época era a melhor, ou a menos adequada, para quem é adepto/a do trekking. Eu nunca fui. Prefiro percursos planos. Posso passar o dia todo em uma longa caminhada, como já fizemos de Recife a Suape, por exemplo. Mas tentei.
As chuvas eram torrenciais, de monções, mas inconstantes. O que significa que alternava com algum sol, ou nuvens e calor. Mas as montanhas, paisagem exuberante com plantações de arroz avarandadas, ficavam encharcadas. Descer ou subir era se equilibrar no barro escorregadio, dificuldade a mais.
No primeiro dia de trekking fui ficando pra trás, mas consegui chegar junto com o grupo, que às vezes parava para me esperar. Ou era alguém que, solidariamente, ia ao meu lado. Puxava conversa, o que me tirava mais ainda o fôlego. Foi uma tarde de sol.
No segundo dia caia aquela chuvinha intermitente, que vai minando a terra. Usávamos capas de chuva coloridas e descartáveis. Notei que além da nossa guia, duas garotas seguiam ao meu lado. Qualquer ameaça de deslize, me davam o braço. Às vezes avisavam antes e sugeriam passar por este ou aquele atalho. Uma atenção que era ao mesmo tempo desatenta. Elas estavam habituadas àqueles caminhos. Pra ter uma ideia, enquanto conversavam entre si, cuidavam de mim e ainda teciam presentes com folhas arrancadas dos arbustos. Ganhamos pequenas lembranças: corações, casinhas, animais, tecidos em verde. E não escorregavam nem uma vez. Aliás, ignoravam elegantemente o que para nós merecia atençao. Uma besteira pra elas, que mais pareciam estar caminhando no calçadão de Boa Viagem!
Depois da descida íngreme, o desafio da subida igual. Na parada para recuperação, antes do que parecia ser o pior, já estava esgotada. Havia um belo rapaz francês que foi muito camarada e me disse: você não precisa ir até o final, vou interceder, etc. Já estava visível meu despreparo para aquela aventura.
Não caí nem uma vez. Teve gente que sim, o que rendeu risadas e roupas cheias de barro. Mas o cansaço pesou. E também pensar que era demais seguir às custas da atenção e cuidado daquelas duas garotas.
Ciente, disse a nossa guia que não tinha como continuar. Comentários. A garota pegou o celular e fez um ou dois contatos. Me pediu para esperar sentada e o grupo seguiu adiante. Outra menina apareceu não sei de onde e me levou por um caminho no meio da floresta até uma pequena pista de pedras, onde em minutos surgiu um motociclista que me deixou de volta na pousada. Elas foram de uma responsabilidade, tranquilidade e competência admiráveis.
Não pude deixar de pensar: imagina se além do domínio do território, na época das lutas anti-coloniais para se libertarem – primeiro do jugo chinês, depois do francês – e anti-imperialista – para expulsarem os norte americanos – os/as norte-vietnamitas tivessem telefones celulares para se comunicarem entre si a médias e longas distâncias!?! A derrota dos invasores talvez tivesse tomado menos tempo. Isso, enquanto fizeram também uma revolução socialista, que foi fundamental para superar a destruição da guerra.
No retorno, a dona da pousada me recebeu calorosamente e me convidou para uma saída. Na garupa da moto – meio de transporte mais acessível – a acompanhei nas compras em um mercado onde conheci diferentes hábitos alimentares. Me convidou também para o almoço coletivo das pessoas que trabalhavam na pousada. Diversas cumbucas de onde nos servimos com hashis. Uma das novidades me atraiu em especial: alguma coisa que tem entre a pele e a carne do cavalo. Algo entre cartilagem e gordura, músculo talvez. Era durinho, fazendo sentido dentro da boca. Muitos vegetais e arroz, além de ave e peixe. Uma delícia tudo!
Sa Pa é uma cidade turística. E o turismo está sustentado pelo trekking e beleza da paisagem. É mais uma dessas cidadezinhas onde o comércio cresce desordenadamente em função do número de visitantes que a procuram. Pousadas, restaurantes, bares, cafés, uma cansativa quantidade de lojas de souvenires, um ou outro museu, se acumulam em um pequeno centro. Tem ainda uma praça, templo, um espaço para feira livre de artesanato, atividade que é também realizada pela comunidade Black Hmong .
Naquele dia à tarde, como não estava mais na programação dos trekkings, tentei rotas de fuga. Vale a pena sair desse entorno, rumo ao lago com pedalinhos ou outras paragens.
No final do passeio, um café com bolo. Uma mulher nativa Black Hmong, a mesma vestimenta das garotas guias, olhou para meu bolo gulosamente e me pediu algum dinheiro. Perguntei a ela se queria o mesmo café e bolo, no que aquiesceu. Fiz o pedido, que foi mal recebido porque era pra quem era. A atendente conversou com alguém, tentou recusar. Insisiti no que parecia estar interditado. Ela não permitiu que a mulher se sentasse. Embale, por favor.
Fiquei pensando: como quem carrega uma economia na inteligencia e nas costas pode ser assim discriminada? Se estas “pernas” fossem cortadas, tudo o mais poderia ruir. E porque elas estão excluídas da riqueza que circula nesta cidade? Do outro lado do mundo, mais uma vez a constatação de que não há limites para a estupidez humana.
O Vietnam, principalmente ao norte, demonstrou ter uma população com enorme senso de coletividade, assim como capacidade de resistência e resiliência, em situações de muita precariedade. A mim me encantavam pela alegria e disposição para o trabalho, um ânimo voltado à superação das adversidades, percebidos em toda parte por onde passei. Foi no Vietnam também que descobri a beleza das plantações de arroz a se perderem no horizonte.
Este vídeo não tem legenda para o português, mas vale a pena pelas imagens. Além de paisagens de Sa Pa e Saigon, mostra um pouco da cultura local, e conta sobre um projeto que apóia o trabalho da comunidade na recepção de turistas:
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*Carla Gisele Batista é historiadora, pesquisadora, educadora e feminista desde a década de 1990. Graduou-se em Licenciatura em História pela Universidade Federal de Pernambuco (1992) e fez mestrado em Estudos Interdisciplinares Sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela Universidade Federal da Bahia (2012). Atuou profissionalmente na organização SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia (1993 a 2009), como assessora da Secretaria Estadual de Política para Mulheres do estado da Bahia (2013) e como instrutora do Conselho dos Direitos das Mulheres de Cachoeira do Sul/RS (2015). Como militante, integrou as coordenações do Fórum de Mulheres de Pernambuco, da Articulação de Mulheres Brasileiras e da Articulación Feminista Marcosur. Integrou também o Comitê Latino Americano e do Caribe de Defesa dos Direitos das Mulheres (Cladem/Brasil). Já publicou textos em veículos como Justificando, Correio da Bahia, O Povo (de Cachoeira do Sul).
Fui eu, Carla, quem tirou as fotos que ilustram esta coluna.