Assistente social residente na Alemanha relata situação de imigrantes refugiados.
Marly Borges de Albuquerque*, em colaboração à coluna da Carla Batista.
Há 26 anos, saí do Recife em direção à Alemanha. Enquanto migrante residente, com passaporte alemão e uma situação profissional estável, afirmo que a pandemia Covid-19 não afetou muito as minhas estruturas sociais. Contudo, aguçou o meu olhar para outras comunidades de imigrantes com menos direitos sociais e/ou que possuem status de residência instável. Eu me refiro aqui, especificamente, aos exilados políticos e refugiados que tiveram que emigrar de suas casas em função da situação de guerra em seu país de origem.
Na minha função de assistente social tenho acompanhado a comunidade imigrante desde 2011, ano em que teve início a guerra da Síria. A guerra provocou uma emigração em massa dessa população para países europeus, particularmente em 2015. A assistência social e as políticas públicas implantadas na Alemanha para atender a esse grupo ainda se mostram precárias, além de ferir direitos humanos básicos da população imigrante refugiada, como, por exemplo, o direito de morar, trabalhar e se locomover dentro do país.
Os/as refugiados/as muitas vezes vivem em situação de moradia precária, em abrigos superlotados, dividindo espaços coletivos com mais de cinco pessoas. Frente a esse cenário, as medidas de segurança aplicadas pelo governo para conter a proliferação da pandemia não se adequaram à realidade social da população refugiada, nem de outras comunidades migrantes, cuja situação de residência no território alemão não se encontra regularizada. Desse modo, acentua-se a desigualdade social dessas comunidades, colocadas em um lugar, onde a discriminação se tornou mais veementemente alarmante.
Para essas populações o isolamento social, assim como as experiências de discriminação, vividas com o enfrentamento a grupos neonazistas, causam muito mais danos à saúde psicológica. Como exemplo, gostaria de citar o caso acontecido em um abrigo para refugiados em Dresden, estado alemão com uma grande incidência de grupos neonazistas.
Ao serem descobertos dois casos de Covid-19 neste abrigo, onde viviam mais de cem refugiados, o sistema de saúde propôs testar seus moradores antes de isolá-los totalmente. A reação de uma grande parte da população frente a essa medida foi racista e discriminatória, pedindo a deportação em massa dessa comunidade de refugiados.
Para se fazer um paralelo com a realidade no Brasil, deve-se olhar a forma como o presidente Jair Bolsonaro vem desenvolvendo a sua política de omissão e falta de compromisso total para com a população brasileira, em particular, as vítimas do coronavírus. Observa-se mais uma vez a agressão criminosa aos direitos humanos básicos, principalmente nas camadas sociais em condições de maior vulnerabilidade social, o que apenas reforça a situação dos privilégios destinados à uma pequena parcela da população. Essa omissão política provoca um índice altíssimo de óbitos em decorrência da pandemia, levando o país a um caos político, social e psicológico com consequências irrevogáveis. As mais afetadas, sem sombra de dúvida, são as pessoas que já têm sua sobrevivência em risco desde sempre, como as populações indígenas, negras, pobres e a comunidade LGBTQIA+.
Mesmo que aqui na Alemanha ainda existam grupos que não foram contemplados de imediato com ações de segurança para impedir o crescimento da pandemia, o governo alemão conseguiu instalar medidas rápidas e básicas de saúde em prol da população em geral, evtitando assim a sobrecarga do sistema de saúde e, consequentemente, a redução do número de óbitos em função do vírus.
Não é nada fácil fazer uma reflexão sobre o que a pandemia trouxe de positivo, mas reforço aqui uma visão pessoal. O fato de ter que dar um break geral durante alguns dias, me fez direcionar o olhar à forma como estava levando o cotidiano, seja na relação com o trabalho e/ou nas relações sociais. Percebi que estávamos vivendo nesse mundo em uma velocidade louca. Rapidez que não proporciona tempo para nos aprofundarmos em questões fundamentais à relação social e à sobrevivência humana, nos fazendo seres ainda mais egocêntricos e superficiais, desencadeando uma onda de “acionar” sem rumo. Então, penso que parar foi bom! Parar pra olhar para mim e para os outros, e perceber que, continuar assim, pode significar o fim da humanidade.
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*Feminista de raiz, Marly Borges é atriz, arte-educadora e terapeuta familiar de abordagem sistêmica. Trabalha há 20 anos como assistente social na Alemanha.
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