Estamos passando pela primeira pandemia do novo século e quem mais tem sofrido com ela e todas as problemáticas de um momento como este são os/as mais pobres. No Rio de Janeiro, a dita cidade maravilhosa, são as favelas e as periferias que têm passado pelo sufoco do desemprego, da fome, do aumento no número de contaminados/as pela covid-19. Soma-se a isso os tiros disparados a esmo pelas operações policiais, ordenadas pelos próprios governantes, que deveriam ter como prioridade salvar as nossas vidas. Como sabem, mesmo que haja um impedimento emitido pelo STF, as operações continuam a acontecer, criando obstáculos permanentes às tentativas de salvarmos as nossas próprias vidas durante a pandemia. Historicamente, são políticas que não funcionam pra nós, que não reconhecem nossos direitos. O que é persistente na favela é a luta pela vida, contra a morte que está sempre à espreita, não se deixa esquecer.
Por Gizele Martins*
Neste contexto, vários coletivos de favelas têm se mobilizado como frentes de luta. No Conjunto de Favelas da Maré, localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro, habitado por 140 mil moradores, comunicadores e comunicadoras que aí atuam há décadas se juntaram e formaram a Frente de Mobilização da Maré para combater a fome, levar informação sobre os cuidados para diminuir a transmissão do vírus e lutar pela garantia de direitos. Trabalho este que vem sendo liderado, principalmente, por mulheres negras destas periferias.
A elas se remete um gigantesco trabalho de enfrentamento à covid, tentando buscar doações de alimentos, remédios, máscaras e apoio para enterros de moradores/as que estão morrendo por causa do vírus, dos já conhecidos tiroteios, e de tantas outras doenças. Trabalhos parecidos têm sido realizados em outras favelas, a maioria deles organizados também pelas mulheres. São elas as que não têm a escolha de levar adiante, ou não, uma ação difícil como esta. Digo que não é uma escolha porque elas estão lutando pela própria sobrevivência e pela vida dos seus.
Imagina viver numa sociedade tão desigual ao ponto de ter gente do outro lado da pista do bairro com carro guardado na garagem, enquanto nos viraramos nos trinta para ter um carro pra transportar comida ou até mesmo gente doente?!?! Imagina não ter documentos para lidar com a burocracia dos enterros gratuitos, com caixão de papelão, e necessitar de fazer vaquinha para garantir os sepultamentos?!?!
Existem outras iniciativas importantes, como a Sociedade das Poetisas Vivas; o Comitê Popular da Crise – Em Defesa da Vida; apoios que se concretizam em cestas básicas, material de prenvenção, etc; conquistas, como no caso da demanda da Rede de Apoio de Advogados e Advogadas Populares (RAPP) que garantiu que a Defensoria Pública organizasse o plantão para dar cobertura aos atos da favela. São muitas coisas boas, que estão, no entanto, aquém de necessidades estruturais que precisam ser enfrentadas de forma permante.
Mas, para além de lidar com um gigantesco trabalho como este, feito pelas mulheres nos seus locais de moradia numa ação que é autônoma e sem grana, ainda há o desafio de tentar quebrar os estigmas, estereótipos, invisibilidades e a falta de cuidado que subsistem dentro dos nossos próprios coletivos. Problemas históricos, o machismo e o racismo são questões estruturais que precisam ter fim. Eles tornam o trabalho das mulheres ainda mais desafiadores. E o trabalho de comunicadores/as, para além de informar e educar, deve se configurar também em um registro histórico de tudo o que se vive e aprende no confronto do humano com a realidade que o desafia e limita. Por isso nos mantemos atentas e atuantes.
Para terminar, dizer que a covid-19, a fome, o racismo e o machismo, serão melhor combatidos se toda uma sociedade lutar junto contra eles e com estes e estas que estão na linha de frente para enfrentá-los. A favela neste momento precisa de todos e todas para vencer o medo da morte, seja da covid-19, seja do tiro.
Saiba mais em @Mare0800; https://www.frentemare.com
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* Moradora da Maré, comunicadora comunitária, jornalista formada pela Puc-Rio, mestre em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas. Recebeu homenagem da Câmara Municipal do Rio de Janeiro com a medalha Pedro Ernesto. Já ganhou inúmeros prêmios e homenagens por causa de seu trabalho no movimento de favelas. Organiza o Movimento Internacional Julho Negro. Trabalha hoje na Alerj e como jornalista em um sindicato no Rio de Janeiro. Além disso, é autora do Livro “Militarização e censura – A Luta por liberdade de expressão na Favela da Maré”.