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O vírus e seu governo

Brasileira que vive em Oxfordshire aborda a trajetória do coronavírus  no Reino Unido.

Por Maria Betânia Silva*

Em janeiro deste ano a China anunciou a construção de um hospital, em dez dias, para receber os infectados pelo coronavírus. Jornais do mundo inteiro trouxeram o assunto como manchete, várias notícias se sucederam e informações não faltaram.

Enquanto isso no mundo Ocidental… o surto da doença se mantinha apenas como um problema da China. A OMS declarou emergência internacional mas só considerou pandemia em março, quando constatada a triplicação de casos, afetando vários países com a chamada transmissão sustentada. No Reino Unido foram muitos os programas de entrevistas com especialistas, antes mesmo da declaração de pandemia. Foram comuns as afirmativas de que o risco de propagação no país era baixo e que, caso ocorresse, o Reino Unido estava preparado para lidar com o problema. Exaltava-se o papel do NHS (Serviço Nacional de Saúde), uma das poucas coisas de acesso gratuito nesse país: um sistema de saúde universal para os residentes que estão nele registrados. Criado nos anos 40, é orgulho nacional. No Reino Unido, um médico clínico, designado GP (General Practitioner) define quando e porquê uma pessoa deve ter consulta(s) com especialista(s), cabendo-lhe produzir o documento de autorização. Um sistema criterioso e relativamente eficiente.

Vale enfatizar que nas inúmeras entrevistas veiculadas em rádio e TV ressaltava-se a competência dos médicos infectologistas e cientistas do país, assim como o conhecimento científico por eles acumulados ao longo de anos de estudos e de pesquisas, assim como a experiência adquirida no acompanhamento de epidemias ao redor do mundo, destacando-se a mais recente e inquietante delas: a do Ebola, nos países do oeste da África. Realmente, é inquestionável o trabalho realizado pelos profissionais do NHS, muitos deles de origem estrangeira. Apesar disso, durante a última campanha eleitoral para o Parlamento Britânico,  que resultou na vitória do conservador Boris Johnson para assumir o cargo de Primeiro-Ministro, esses profissionais estiveram na sua mira para serem “despachados” dos seus postos. Desse modo, estaria o Partido Conservador contribuindo para a conclusão de um projeto de desmonte do sistema de saúde gratuita que começou com algumas reformas problemáticas em 1988, no governo de Margaret Thatcher, e, um pouco mais tarde, recebeu uma ajuda condenável por parte do governo de Tony Blair, conhecido como Liar (mentiroso) e traidor dos princípios do Partido Trabalhista, pelo qual se tornou Primeiro- ministro.

De igual modo, inquestionável é a excelência das pesquisas e estudos na área médica produzidos pelos cientistas britânicos. Quando declarada a Pandemia, em março de 2020, a Covid-19 se tornou objeto de modelos matemáticos que projetavam um número de infecções muito elevado em curto espaço de tempo. O mais impactante veio do Imperial College London, prevendo centenas de milhares de infectados e de mortes em quatro meses, se nada fosse feito. Foi um estudo decisivo para fazer o Primeiro-ministro, Boris Johnson, que adotara uma atitude negacionista sobre a gravidade da doença, mudar de rumo no combate à Covid-19. Ironicamente, foi ele próprio infectado, hospitalizado, mantido por algumas semanas afastado das suas funções, se recuperado e exibido, na sequência, um vídeo, declarando a sua gratidão ao NHS cujos profissionais, para ele, salvaram sua vida.

Não durou muito, porém, o gesto justo e magnânimo do Primeiro-ministro Boris Johnson, porque, ao reassumir a chefia do país, propôs uma espécie de aumento da contribuição anual a ser cobrada dos profissionais do setor de saúde vindos de fora da União Europeia. Seriam, taxados, portanto, estrangeiros não europeus do setor de apoio aos serviços de saúde, para que lhes fosse garantido acesso ao NHS e robustecidos os fundos do sistema às suas custas. Entre esses profissionais estavam os encarregados da limpeza hospitalar, cuidadores e porteiros. A proposta foi vencida pelo bom senso dentro do Parlamento, depois de adjetivada como monstruosa e contrastante com aquela que previa pagamento de pensões para familiares dos profissionais da saúde mortos em decorrência da Covid-19.

Antes de adoecer, em março, o Primeiro-ministro determinou o fechamento das escolas no Reino Unido e, antes disso, a Universidade de Oxford, por exemplo, já havia suspendido as suas atividades. Logo em seguida, o governo se ativou para lançar uma campanha de apelo “Fique em Casa, Salve Vidas, Proteja o NHS”. Pouco a pouco a população aderiu aos apelos de se manter reclusa, embora aqui e acolá as transgressões ao lockdown ocorressem. Apesar do lockdown recomendado e, acompanhado, em situações específicas, de uma medida punitiva (multa) para quem o desobedecesse, pôde-se ver o crescimento do número de infectados e, em seguida, do número de mortos em decorrência da Covid-19.  Começava a ficar claro que a ação foi tardia… Boris Johnson apressava-se em lançar um plano de ataque ao vírus, propunha a volta de médicos aposentados para atuar nos hospitais, etc… Dentre aqueles que se voluntariaram, um morreu de Covid-19. O governo então tenta tranquilizar a população afirmando que se o número de mortos ficasse em menos de 20 mil as estratégias de combate teriam atingido seu objetivo. Até 08 de junho do ano em curso, em informação constante na página oficial da OMS, o Reino Unido conta com 284.872 casos confirmados, 40.465 mortes. Os jornais não param de noticiar que muitas delas ocorreram nos hospitais e, significativamente, incluem pessoas idosas, muitas delas residentes em asilos; assim como os BAME, sigla em inglês que designa Negros, Asiáticos e Minorias Étnicas.

1º de junho foi anunciado como a data para relaxamento de algumas medidas do lockdown, a mais significativa delas, a abertura de escolas primárias e permissão para encontros nos parques com não mais de cinco pessoas, desde que mantido o distanciamento social de 2m. Embora esse afrouxamento seja gradativo, dependendo do local, do setor de atividade e da consciência das pessoas, aglomerações acontecem. No que se refere à volta às aulas, há dúvidas entre os pais. A medida abrange primordialmente crianças cujos pais atuem em setores de atividade essencial e numa configuração diversa daquela que ocorria antes da pandemia. Mas a volta para alunos com necessidades especiais, por exemplo, é, ainda, um ponto de interrogação. Algumas escolas não sabem como lidar com a situação porque as atividades pedagógicas para esses alunos são adaptadas e a interação entre eles é mais do que nunca uma parte importante do processo pedagógico.

De outro lado, o ano letivo para os adolescentes na faixa etária entre 14-15 anos se tornou objeto de grande preocupação. Isto porque a longa pausa implicou uma perda significativa de conteúdo que eles precisariam dominar para, no ano letivo seguinte – 2021, revisarem esse conteúdo e realizarem o exame anual denominado GCSE – General Certificate of Secondary School, que lhes define o acesso ao ensino de nível médio nas disciplinas por eles escolhidas. Por seu turno, os que já se encontravam no último ano do ensino secundário, passaram para o ensino médio, sem o exame GCSE e mediante a definição de outros critérios. Assim, o ano letivo para esses alunos foi encerrado com a pandemia e somente em setembro eles retornarão à escola, desta feita, já no primeiro ano do ensino médio.

Muitas são as desconfianças quanto ao controle da doença no território britânico. O governo, porém, se ampara na afirmação de que “R” (o número médio de infecções secundárias produzidas por uma pessoa infectada) está em torno de 1, o que indica a possibilidade de manter a situação sob controle. Na população sobram dúvidas sobre a metodologia na contagem de casos, críticas apontando falhas na realização de testagem, sobretudo quanto à promessa de ampliação como uma medida fundamental recomendada pela OMS para rastrear as infecções e contê-las de forma eficaz. Há também, claro, muitas interrogações sobre como tratar a doença e entender completamente o seu desenvolvimento em cada organismo afetado. Como em todos os lugares que se deparam com o afrouxamento das medidas, há pessoas no Reino Unido que sentem a insegurança gerada pela falta de confiança no governo e pela experiência inédita de terem, de uma hora pra outra, saído do seu cotidiano de trabalho, de estudos, adiado eventos, viagens, etc e se enclausurado em casa, convivendo com “a certeza da incerteza do futuro”, completamente nu, sem as fantasias habituais.

A volta às ruas é uma mistura de liberdade entre os que exageram e o receio dos prudentes porque se trata de uma liberdade que inibe o engrandecimento do coletivo. Cinemas, teatros, shows não estão ocorrendo. A suspensão desses eventos artísticos afeta a dimensão simbólica da vida, algo que arte alimenta. Tal como a religião, a arte (sobretudo para quem não tem religião) é o elo de ligação entre o ser humano e o sentido que se confere à existência. Sem o trânsito nos espaços de encontro social que aquece corpos e corações com o calor humano, a vida ainda não retoma a sua normalidade. O “novo normal’ é o que se vive. O governo britânico preparou o terreno para o afrouxamento do lockdown adotando o slogan “stay alert, control vírus, save lives” (esteja alerta, controle o vírus, salve vidas), o que nada esclarece e faz as pessoas escorregarem na angústia na mesma velocidade com que se anuncia o número de casos da Covid-19, mundo afora. De certo modo, fica a sensação no Reino Unido de que algumas infecções evoluem mais rápido em função do voto que a população deposita nas urnas. O Brasil, aliás, segue esse “exemplo”, copiando-o muito mal!

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*Servidora pública aposentada. Os desenhos, produtos “do isolamento social” são de sua autoria.