Professora de Comunicação Social fala sobre acusação de estupro envolvendo o jogador Neymar
Por: Daiany Dantas. Jornalista, professora de Comunicação Social na UERN, integrante da Articulação de Mulheres Brasileiras
O episódio envolvendo Neymar, uma modelo brasileira, uma acusação de crime sexual e a prática de um crime cibernético, este último contando com o testemunho e anuência de milhões de seguidores, testa a nossa capacidade de resistir, sendo mulher, numa sociedade que tão facilmente aceita tergiversar a respeito de nossa idoneidade. Testa também nossa habilidade em reunir, dessa resistência, voz e bom senso compatíveis com o debate que o caso evoca.
Saber que um homem – não qualquer homem, claro – tem o poder de reivindicar imunidade pública praticando um crime, sobretudo para eximir-se da acusação de outro, é um amargo sinal de que, mesmo em 2019, ainda estamos a alguns milhares de anos, talvez, para que a autonomia e a integridade de uma mulher não sejam mais alvos gratuitos de violação no espaço público, apenas para se provar um ponto.
“Ah, mas isso é fruto da inconsequência, do deslumbramento que o poder financeiro provoca nessas jovens fortunas vindas de contextos periféricos. É o resultado de sua adesão ao delírio coletivo que o alçam à condição de herói inatingível de uma nação”. O primeiro crime, uma acusação de estupro da mulher que foi a Paris para encontrá-lo, está em julgamento. Mas o segundo foi, provavelmente, um deslize? Será? Esta possivelmente será a linha adotada por sua equipe de advogados de defesa – meticulosamente reunida entre grandes escritórios do país e que conta com a presença estratégica – mais uma nota triste – de uma feminista.
Bem: Eu discordo. O segundo crime grosseiramente dilata o primeiro, multiplica a dor daquela suposta agressão, ao tomar a acusação como algo banal. E reversível pela desmoralização da vítima. Além disso, o segundo crime reitera um padrão, comum e aceito sobretudo entre personagens políticos do porte de Neymar. O padrão de uma masculinidade tóxica cultuada e desejada em seu meio. O padrão de um homem cujo status vip é reiterado pelo modo como volatiliza suas relações com mulheres.
Ao exibir conversas íntimas que ilustravam, como qualquer outra conversa íntima, o desejo feminino de uma mulher que flertava com ele no âmbito privado de suas redes sociais, Neymar dá um testemunho. O testemunho de que as expressões de desejo prévio anulam qualquer possibilidade de não consentimento entre as pessoas que estão presentes num ato sexual. Dá também o testemunho de que mulheres sexuadas e seus corpos são passíveis de punição pela observação e escrutínio público. Subscreve o ódio a um determinado tipo de mulher, classifica as mulheres quanto a suas condutas sexuais, estigmatiza e repudia toda e qualquer mulher numa relação sexual que em algum momento alegar o não consentimento, se esta, antes, demonstrar o menor índice de desejo.
Ele pune, na verdade, o gênero. Pune mulheres jovens que trocam mensagens de erotismo explícito com aqueles que privam de sua intimidade. E declara um veto à possibilidade de que mulheres possam recuar, se assim desejarem, se a qualquer momento o seu parceiro tomar uma atitude que instabilize aquele pacto de confiança. E pune publicamente porque imagina – sabe, na verdade – que terá ressonância na opinião pública. Por quê?
Primeiro, porque ele se vale do seu status de ídolo e do paradigma da resistência masculina que o futebol representa. Neymar é um emblema renovável daquilo que passamos a entender como a potente masculinidade nacional alavancada pelo futebol. Do jovem comum que triunfa diante da improbabilidade, transcende suas origens e alcança reconhecimento pela agilidade de seus pés e resistência de seu corpo. Uma espécie de gênio artístico democrático, que subverte destinos por meio dessa instituição gasta, porém alentada, ainda, que é a seleção brasileira. Assim como ocorreu num passado distante com Pelé e mais recentemente com Ronaldo, Neymar é o jogador-chave, o talento de sua geração.
O futebol é um paradigma nacional de resistência. Um paradigma sobretudo masculino. De uma resistência masculina. A atacante Marta e seu reconhecimento tímido e tardio, mesmo diante de troféus mais numerosos e ostensivos, é prova disso. Para concentrar a paixão de um povo e, portanto, merecer uma fortuna midiática e financeira vinda de complexos acordos dentro e fora dos campos, esses heróis exploram exaustivamente a sua marca.
Como toda marca, esta molda a figura do homem a uma imagem masculina que reflete desejos de uma nação. Falamos de homens jovens e periféricos que saem de contextos em que seus corpos são sitiados. Escapam dos massacres nacionais que, segundo o Atlas da violência de 2017, dizimam majoritariamente (74%) homens jovens e negros. A recompensa por essa burla de caminho é inestimável: fama, fortuna, e, claro, mulheres que ornam com seu status.
Os documentários The Mask you live in (2015, disponível na Netflix) e Minding the Gap (2019) falam da relação entre o ambiente esportivo e a violência masculina. Nas entrevistas exibidas no primeiro, percebemos diversas declarações de atletas amadores, confirmando que demostrar agressividade física é um adorno em ambientes de prática esportiva, frequentemente usado para distinguir os mais frágeis dos mais fortes e estabelecer hierarquias de obediência entre grupos de homens. Os estupros de jovens mulheres alcoolizadas também foram relatados como índice de admiração e rito de passagem na trajetória desses rapazes. No segundo documentário, três skatistas falam de sua convivência com a violência doméstica no interior de seus lares. E o impacto que esta teve em suas vidas adultas, quando se tornaram, eles próprios, agentes de violência doméstica e alcoólatras. No futebol são igualmente comuns os casos de denúncia de violência doméstica e sexual como traço biográfico dos atletas.
A masculinidade tóxica é um rito difícil de transcender. Porque envolve ciclos, rotinas. Repetições de atos e gestos que perenizam feridas das quais os feridos, em vez de buscarem cura, se orgulham. Pois mobiliza um bloco de afetos e coligações estabelecidas entre aqueles que mais detém privilégios na sociedade: os homens. E, nesse caso, uma indústria e um imaginário. Uma fábrica de ideais masculinos.
Como a Revista Placar, dedicada ao público do futebol, cujas edições despontaram nos anos 1990, trazendo entrevistas de perfil bem-humoradas com os craques e mulheres de biquini nas páginas centrais. Nelas, podíamos ver a glamourização dos heróis em suas armaduras, ao lado das musas da estação. Foi a Revista Placar que exibiu em abril de 2014 uma capa com o goleiro Bruno, cuja manchete clamava por ele: “me deixem jogar”. Bruno, feminicida condenado, pedia progressão de sua pena para a prisão domiciliar, após matar, esquartejar e dar de comer a cachorros os pedaços do corpo de sua ex namorada, Eliza Samudio, que o acusou de violência doméstica.
No mundo que as revistas e o imaginário futebolístico concretiza, essas mulheres não são vistas como sujeitos. Os termos mais correntes são “aproveitadoras” e “marias chuteira”. Ao entrevistar a mulher que move a denúncia de estupro contra Neymar pelo SBT, Robeto Cabrini perguntou diversas vezes se ela sabia que iria ter uma relação sexual e também a respeito de quem custeou as suas passagens áreas, mencionou possíveis tentativas de extorsão e dívidas pregressas da entrevistada. Todas as questões que envolviam o episódio (a acusação de estupro) foram permeadas por um tom acusatório, que tentava implicar falaciosamente que a aceitação de um encontro com intenções sexuais preterisse qualquer quebra de acordo consensual posterior. Não consigo lembrar, enquanto professora de jornalismo, de outra entrevista em que a suposta vítima estivesse sob um arsenal tão meticuloso de questões que tentassem incriminá-la. Os laudos que ela apresentara, contendo evidências tais como manchas decorrentes de agressão física, foram ignorados. Ao que parece, era prioritário constranger a mulher, que de antemão estaria errada ao acusar o ídolo, almejado e desejado por ela anteriormente. E a violência que aconteceu a portas cerradas não pertencia aos interesses públicos do veículo. Nem do país, ao que parece.
Mesmo que este seja um dos países mais feminicidas do mundo. Em que a cada 11 minutos uma mulher é estuprada. Onde os crimes de estupro conjugal, ordinariamente comuns, permanecem invisíveis, afinal, o consentimento é um mistério entre paredes.
A imprensa normaliza uma acusação de estupro, memes ridicularizam, correntes do whatsapp prescrevem a “tolos” como Neymar o que fazer para evitar este tipo de abalo. Uma sociedade inteira embala Neymar, infantilizado, em seus braços. Neymar, mantido menino aos 27 anos – exato tempo de vida de alguns artistas que também foram marcos de sua geração – parece nos dizer que há algo na masculinidade que impulsiona esse futebol que evita morrer. Algo que espezinha, sob as chuteiras já tão puídas do patriarcado, não apenas a punição por um crime, mas a condição de existência de todas as mulheres. As atingidas pela acusação de seu suposto crime de estupro e as criminalizadas por ele, em seu acolhido crime de vingança pornográfica.
Como tia de dois garotos que amam futebol, torço para que o jogo vire antes que seja muito tarde. Para os verdadeiros meninos dessa história.