A importância de espaços que se abrem para fazer conhecer e ouvir as palavras/vozes das mulheres.
Por: Carla Gisele Batista*. Originalmente publicado aqui.
Adalzira Bittencourt (1904-1976) publicou várias obras sobre a participação política e social das mulheres. No livro “Sua Excia. A Presidenta da República”, um romance futurista baseado nos ideais do Partido Republicano Feminino, vislumbrava a eleição da 1ª presidenta no ano de 2.500. Nísia Floresta, considerada a primeira escritora feminista do Brasil, era também atenta às questões ambientais e dos povos indígenas. Publicou “Direitos das Mulheres e Injustiças dos Homens”, obra inicial, em 1832. Estes dois livros estão entre 51 em exposição na Biblioteca Mário de Andrade, no Centro de São Paulo.
Os exemplares integram a seção de obras raras da Biblioteca, que tem mais de 40 mil volumes. O documento mais antigo data de 1.477. A pesquisadora e bibliotecária Joana D’arc de Andrade e Rízio Santana, especialistas em obras raras, são os responsáveis pelo acervo e localizaram cerca de 120 livros de mulheres entre as raridades. A organização da exposição, da qual são curadores, foi proposta pela nova diretora da Biblioteca, Josélia Aguiar.
Joana, quando se referiu a Auta de Souza, natalense nascida no século XVIII, contou que mulher publicar não era bem visto. “Os escritores não gostavam nem ao menos de prefaciá-las”. Imaginem a ousadia: uma mulher expor ideias publicamente!
Bárbara Heliodora, cujo companheiro era o inconfidente mineiro Alvarenga Peixoto, teve poemas publicados junto aos dele, o que hoje dificulta identificar o que é de autoria dela. Rita Joana Souza, citada no livro “Mulheres escritoras do século XIX”, era pernambucana e morreu aos 22 anos. Chegou a escrever tratados de filosofia. Mas nada foi encontrado dos seus escritos. Houve até uma mulher que foi convidada para certa academia de letras. Não podendo aceitar em razão do seu sexo, pasmem! foi o marido quem assumiu no seu lugar.
Confinar as mulheres ao espaço doméstico tem significados e repercussões que são muito mais profundos e restritivos do que o enclausuramento em si. Até a expressão dos sentimentos e pensamentos era cerceada, ocultada. Engolidos. São várias as estratégias utilizadas para apagar existências.
A exposição finaliza com “Revolução Industrial. Romance Proletário”, da modernista Patrícia Galvão, a Pagu. O exemplar é único sobrevivente, segundo a bibliotecária. Após 26 de maio, quando termina a mostra, os livros estarão disponíveis para consulta. Eles fazem parte da coleção geral da Mário de Andrade, que tem mais de 300 mil volumes. Com mostras como estas “a ideia é valorizar encontros literários”, afirma Joana.
A Biblioteca espera com a exposição valorizar a produção das mulheres, muitas delas feministas, em grande parte desconhecida. Entre as novidades, para mim, uma pernambucana que se radicou em São Paulo, a feminista Josefina Azevedo e sua publicação de 1987, “Galeria Ilustre (Mulheres Célebres)”, que inclui entre outras a biografia de George Sand.
Com o mesmo propósito de valorização foi inaugurado na Mario de Andrade o Sarauzódromo Tula Pilar Ferreira. Na homenagem à poetisa da diáspora, falecida precocemente em 11 de abril, o seu legado de alegria, luta e resistência foi exaltado pelos filhos e também pelas escritoras e poetisas Conceição Evaristo e Roberta Estrela D’Alva, artista múltipla. Conceição Evaristo lembrou a herança que Tula Pilar convocava de Carolina Maria de Jesus. Sobre sua morte, poetizou que foi causada por
“algo na região do peito
algo sufocado que a sociedade brasileira não dá espaço para dizer
as mulheres negras têm vozes engasgadas
vidas impedidas
o adoecimento acontece porque tentam agarrar a vida de qualquer forma
isto as enfraquece e por isso partem antes do tempo
florescer com dificuldade leva ao adoecimento”
O Sarauzódromo vai estar dedicado à literatura, leituras, saraus, slams, etc… Além do reconhecimento e homenagem a Tula Pilar, a abertura do espaço ao público aconteceu com um tributo a Ruth Guimarães, cuja obra mais conhecida é o romance “Água Funda”, que integra a exposição. Ruth, que apenas aos 88 anos, em 18/09/2008, assumiu uma vaga na Academia Paulista de Letras.
Termino com palavras da Conceição Evaristo, “Já passou da hora de reescrever a história da literatura brasileira, da intelectualidade brasileira, afirmando nomes que ficaram fora”… e com uma palhinha da vibrante e luminosa Roberta Estrela D’Alva:
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*Carla Gisele Batista é historiadora, pesquisadora, educadora e feminista desde a década de 1990. Graduou-se em Licenciatura em História pela Universidade Federal de Pernambuco (1992) e fez mestrado em Estudos Interdisciplinares Sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela Universidade Federal da Bahia (2012). Atuou profissionalmente na organização SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia (1993 a 2009), como assessora da Secretaria Estadual de Política para Mulheres do estado da Bahia (2013) e como instrutora do Conselho dos Direitos das Mulheres de Cachoeira do Sul/RS (2015). Como militante, integrou as coordenações do Fórum de Mulheres de Pernambuco, da Articulação de Mulheres Brasileiras e da Articulación Feminista Marcosur. Integrou também o Comitê Latino Americano e do Caribe de Defesa dos Direitos das Mulheres (Cladem/Brasil). Já publicou textos em veículos como Justificando, Correio da Bahia, O Povo (de Cachoeira do Sul).