Maria José Rosado Nunes, socióloga e integrante da ONG feminista Católicas pelo Direito de Decidir.
Um dos grandes problemas enfrentados pelas mulheres no campo das religiões contemporâneas é o recrudescimento do poder e organização das forças conservadoras. Essas não se restringem aos grupos religiosos, são também políticas. É importante notar isso, pois não há como compreender o fundamentalismo religioso sem ter como referência o conservadorismo político que se afirma nos processos internacionais desde a década de 80 e, com especial força, na de 90 e que são a base de sustentação e expansão do conservadorismo religioso. As eleições européias de 2002, as orientações do governo Bush, especialmente após o “nine/eleven”[1], a guerra de Israel contra o povo palestino, o tratamento dado à crise da Argentina são algumas das orientações da política internacional que expressam essa espécie de fundamentalismo político-religioso, extremamente pernicioso para os pobres do mundo, entre os quais mulheres e negras/os se encontram de maneira significativa. Essa presença e atuação de grupos conservadores religiosos causaram certa surpresa, porque um dos debates que orientaram a análise das religiões na década de 70, foi exatamente o da chamada ”secularização”, entendida seja como perda da força religiosa na orientação das condutas cotidianas das pessoas, seja como perda de força política atuante junto aos estados nacionais. Ora, hoje inúmeros estudos apontam os fundamentalismos religiosos como uma poderosa força política ativa. Força que se coloca contra a efetivação dos acordos internacionais estabelecidos nos documentos emanados de diferentes reuniões e assembléias realizadas sob os auspícios da ONU e de outros organismos internacionais. Tais reuniões estabeleceram propostas para a implementação de medidas governamentais favoráveis aos direitos humanos, especificando os direitos das mulheres nesse contexto. No caso latino-americano, apesar do reconhecimento de uma forte tendência de fragmentação e diversificação do campo religioso, com crescente diminuição da hegemonia católica, pode-se dizer que, por um lado, há uma persistência de padrões culturais cristãos que marcam a sociedade; orientam a conduta das pessoas, particularmente das mulheres, em especial no que diz respeito a questões de sexualidade e reprodução humana. Por outro lado, há uma contínua tentativa, por parte de grupos religiosos, de influírem sobre as políticas públicas, de orientarem as legislações nacionais na direção dos valores e normas defendidos por esses grupos. São exatamente essas as características do que se tem chamado “fundamentalismo religioso”, com sentido distinto do que teve em sua origem, restrito ao campo protestante. Rosemary R. Ruether lembra que todos os movimentos fundamentalistas têm em comum “seu esforço por restabelecer um controle patriarcal rígido sobre as mulheres e sua hostilidade para com o princípio da igualdade, da agência autônoma e do direito de controlar a própria sexualidade e fertilidade. (…) Dificilmente se poderia dizer que o Vaticano é menos obsessivo (do que outros grupos religiosos) com a igualdade e os direitos reprodutivos das mulheres, considerados a síntese do maligno secularismo moderno e causa da morte da civilização”. [2] Entre as estratégias de atuação de grupos religiosos conservadores opostos a uma agenda de direitos das mulheres está a de contrapor propostas relativas aos direitos das mulheres a valores apresentados como típicos das culturas e tradições do Sul. O Vaticano, em especial, esforça-se por aparecer no cenário internacional como defensor da justiça econômica dos países do Sul, ao mesmo tempo em que tenta substituir a linguagem dos “direitos humanos das mulheres” por um discurso de cunho mais abstrato e referido à tradição religiosa cristã: “a dignidade humana”. Em um momento histórico em que os movimentos de mulheres procuram articular justiça social e afirmação de direitos individuais, essas contradições tornam mais difícil o jogo de negociações políticas necessário ao avanço dos direitos das mulheres. No caso da América Latina, estas tensões agudizam-se, na medida em que, para grande número de mulheres de extratos sociais empobrecidos, as igrejas aparecem muitas vezes como espaços de proteção e ajuda. Trata-se de uma contradição que, na prática, dificulta o reconhecimento da negatividade da religião para as mulheres, no que tange a sua autonomia no campo da saúde reprodutiva e da sexualidade. Um dos grandes ganhos da Plataforma de Ação de Beijin foi a “rejeição forte, como nunca anteriormente, de justificativas culturais para a violação dos direitos das mulheres”. Percepções correntes de família, de religião e de tradição foram desafiadas por documentos internacionais. Essa discussão evidencia como as questões dos direitos das mulheres e da sexualidade estão intrinsecamente ligadas às problemáticas culturais e religiosas de seus respectivos povos, e exigem paradigmas universalmente aceitos como referência para enfrentá-las. BIBLIOGRAFIA POULAT, Émile. Les Discours sur Les Droits de L’Homme. Ses Paradoxes et sees Contraintes, Extrait: Actes de la IIIéme Recontre of Man: its Paradoxes and Limits, Tunis, Centre D’etudes et Recherches Economiques et Sociales, 1986. ROSADO NUNES, Maria José, Religion and Women´s Rights: The Fundamentalist face of Catolicism in Brazil, in: HOWLAND, Courtney (Ed.), Religious Fundamentalisms and the Human Rights of Women, New York, St. Martin’s Press, 1999. RUETHER, Rosemary Radford, “ The War on Women” , in: CONSCIENCE, A New Journal of Prochoice Catholic Opinion, Vol.XXII, nº 4, Washington, EUA, 2001-2002. SEN, Gita e CORRÊA, Sonia Onufer, “ Justiça de Gênero e Justiça Econômica: reflexões sobre as revisões de cinco anos das conferências da ONU da década de 1990.” Documento preparado para UNIFEM, em preparação para a revisão de cinco anos da Plataforma de Ação de Beijing, 1990 .
[1] Um dos primeiros atos do presidente Bush foi assinar uma ordem que acabava com o financiamento de organizações internacionais que discutem o aborto. Também o tema da abstinência sexual é uma de suas prioridades na batalha contra a Aids e as doenças sexualmente transmissíveis. Jornal Folha de São Paulo, 08/12/02, p. A16.
[2] Dois profundos conhecedores do Catolicismo romano – Émile Poulat, sociólogo e historiador francês, e Charles Curran, teólogo moralista católico americano, afastado da Universidade em que lecionava por suas posições quanto à teologia moral católica – fazem interessantes análises da incompatibilidade entre os princípios liberais de autonomia, liberdade e democracia, e o catolicismo.