Graciela Rodriguez é da ONG Ser Mulher e diretora da REBRIP – Rede Brasileira pela Integração dos Povos O «fim da História», idéia proclamada por Fukuyama na década de 90 e jogada ao vento como a mais nova teoria para explicar os tempos modernos, talvez possa ser atualmente analisada como a expressão mais acabada da essência do fundamentalismo. Faz algum tempo, com a queda do Muro de Berlim caíam todos os fantasmas da «luta de classes» que tinham agitado o mundo por tantos anos e que permitiram manter o equilíbrio de poderes na chamada «Guerra Fria».
Com este santo e senha se consagra a reedição do liberalismo político e econômico que vem sendo deflagrado desde o momento em que Margaret Thatcher assume o governo na Inglaterra e Ronald Reagan nos Estados Unidos. A utopia do mercado ganha força de «pensamento único». Num mundo cada vez mais globalizado, o mercado vai se consolidar como aquela abstração que realizará a melhor alocação de recursos, como o locus onde a oferta e a demanda irão encontrando os caminhos para suprir as necessidades humanas.
Ao mesmo tempo, isso cria o imaginário de um mundo sem necessidade de regras, onde as forças ocultas desse mercado irão em busca da estabilidade e onde o Estado – com suas até então cada vez mais presentes regulamentações – incomoda: ele deve se retirar do setor produtivo da economia. E assim vai ganhar seu novo papel «mínimo». Neste cenário, as regulamentações de todo tipo se fazem inoportunas. Portanto, não só os estados nacionais devem encontrar um novo tipo, senão também o sistema das Nações Unidas com sua ambição multilateralista vai ter, de fato, modificado seu escopo e seu poder de atuação.
Os países que na década de 80 tinham sido estimulados a tomar créditos, ampliando seu endividamento, encontraram-se em 89 com o modelo pronto e organizado pelo Consenso de Washington para dar rumo à expansão do capital na América Latina. Assim, a década de 90 viu a implementação de todas as medidas e propostas ditadas pelas Instituições Financeiras Multilaterais, que obedeciam aos novos padrões de acumulação internacional.
Essa diminuição do papel do Estado veio junto com o ajuste estrutural das contas públicas, a flexibilização das leis trabalhistas, as privatizações e os cortes nas políticas sociais, que inclusive já vinham contando com a utilização do trabalho não remunerado das mulheres para ampliar a eficiência dos serviços públicos, especialmente de saúde e educação públicas. Vocês lembram quando foi a última vez que ouviram falar em implementação e ampliação da oferta de creches? Enfim, o longo receituário do FMI e do Banco Mundial.
Porém, mais um ingrediente foi acrescentado ao longo da década passada, o último e mais novo tempero a ser incluído na oferta de propostas de políticas macroeconômicas para o desenvolvimento: o «livre» comércio.
Sabemos que os povos sempre praticaram o comércio. Grande parte do seu desenvolvimento se deve ou foi impulsionado pelo intercâmbio entre as nações. Evidentemente, isto não seria nenhuma novidade… Porém, a liberalização das regras do comércio internacional aparece agora como determinante para o desenvolvimento, uma vez que os países centrais, que se desenvolveram justamente protegendo seus sistemas produtivos, estão em condições competitivas. Isto é uma novidade…
A Organização Mundial do Comércio – OMC, fez-se, assim, necessária e foi finalmente criada em 1994, durante a Conferência de Marrakech, ao final das demoradas e complexas negociações da Rodada Uruguai. O surgimento da OMC vem coroar o processo de montagem da arquitetura mundial da nova ordem internacional, que tinha sido delineado no fim da Segunda Guerra Mundial com a criação do FMI, do Banco Mundial e das Nações Unidas, todas instituições surgidas do processo de Bretton Woods.
É interessante lembrar que uma das idéias mais importantes naquele momento era também a de criar uma organização no âmbito das relações comerciais. Assim como tinham sido criadas as entidades financeiras (FMI e BIRD), achava-se igualmente necessário promover uma agência especializada para o comércio mundial. Se inicialmente a proposta partiu dos Estados Unidos, eles mesmos impediram sua implementação devido a uma série de motivos. Entre estes, um dos mais importantes foi o receio norte-americano de que um organismo internacional pudesse impedir sua plena liberdade na área do comércio. De outro lado, também contribui o fato de que, em 1948, quando foi finalizada a Carta com o resultado das negociações, já havia sido quebrada a harmonia entre os antigos aliados da Segunda Guerra Mundial e a «Guerra Fria» estava começando a impor seus desígnios.
Deste modo, um total de 23 países assinaram o GATT – Acordo Geral de Tarifas e Comércio (segundo sua sigla em inglês), que não era uma instituição no marco das Nações Unidas e sim um acordo inter-governamental para a regulamentação das relações comerciais entre seus signatários. Foram realizadas sucessivas conferências alfandegárias que tomaram o nome de Rodadas, sendo celebradas oito delas ao longo da existência do GATT.
Assim, chegamos ao recente surgimento da OMC ao final da última das rodadas negociadoras (Rodada Uruguai) e podemos agora falar de uma instituição que vem tendo não somente um papel fundamental nas relações internacionais, mas também um status diferenciado no sistema das Nações Unidas, de onde advém, justamente, sua caracterização e papel preponderante. Podemos dizer que a OMC vem se transformando e representando a expressão do fundamentalismo do mercado globalizado no âmbito da governança mundial.
Trata-se da organização mundial com maior poder de abrangência (formada por 144 países) e de implementação, já que possui diversos mecanismos de sanção ou retaliação para aqueles países que não cumprirem os acordos alcançados no seu âmbito. Diferente do que acontece com outras instituições internacionais, que permitem a livre adesão aos acordos e tratados, na OMC os países se comprometem ao cumprimento dos acordos no momento em que assinam seu ingresso, ou seja, ela tem força normativa.
Por outro lado, a OMC tem um enorme impacto sobre a vida econômica dos países participantes e sua presença toma cada dia maiores proporções. Enquanto suas regras já incidem ou passam a incidir sobre diversos aspectos do desenvolvimento econômico das nações, a OMC – ao mesmo tempo – continua ampliando seu escopo de atuação e os temas sobre os quais exercerá influência. Assim, aos poucos, vem incorporando os serviços, os direitos de patentes, os investimentos, além da agricultura. E não pára por aí, continua avançando, pois novos temas pretendem ser incorporados às negociações de maneira a serem incluídos nos acordos da V Reunião Ministerial da OMC, a ser realizada em setembro de 2003, em Cancún, México. Enfim, trata-se de ocupar um espaço todo-poderoso que cobriria, inclusive, os chamados temas não comerciais, tais como compras governamentais, investimentos e políticas de competição.
Paralelamente, no interior da OMC se multiplicam as formas de driblar o princípio de “cada país um voto” – que rege a convivência dos seus membros – em favor de um sistema em que o voto seria proporcional ao «poder comercial» de cada um. Isto aliado à falta de transparência, às diversas formas de pressão exercida sobre os países periféricos, à existência da chamada “sala verde” para tomada de decisões fora do plenário geral das conferências e, recentemente, à realização de mini-ministeriais com acesso restrito a uns poucos países convidados, forma um leque de mecanismos que vem comprometendo seriamente um sistema de governo minimamente democrático na OMC.
Os impactos sobre a vida e o cotidiano de homens e mulheres, pouco têm sido debatidos. Parte-se do pressuposto de que o crescimento significará quase que automaticamente o desenvolvimento dos países pobres. Porém já conhecemos diversos efeitos dos acordos de «livre» comércio em vigor. Evidentemente, o que está em jogo é a necessidade das corporações transnacionais de não só produzir globalmente, mas também de estender o consumo de seus produtos e serviços comercializados em escala planetária. Os movimentos sociais globais se encontram hoje diante da tarefa de enfrentar a agenda que a OMC prepara para 2003. Outro Seattle se aproxima, o cenário será a belíssima ilha de Cancún.
Deter a OMC, impedir a inclusão dos novos temas, impedir sua onipresença sobre a vida das nações e dos povos, denunciar seu caráter de «constituição mundial» que pretende ultrapassar os temas comerciais e se tornar a instituição para o exercício da hegemonia e do poder das corporações no mercado neoliberal global. Essas são as diretrizes colocadas em curso por diversos movimentos da sociedade civil do mundo inteiro para 2003.
O fundamentalismo traz em si a idéia da intolerância, do exercício do poder sem limite, da hegemonia imposta… A OMC está cada vez mais longe do caminho do multilateralismo – necessário para negociar regras claras e equânimes – para se tornar o rosto do fundamentalismo de mercado na arquitetura da governabilidade mundial .
BOXES DO TEXTO DE GRACIELA
Ajuste estrutural
As políticas de ajuste estrutural são diretrizes econômicas e políticas de governo inspiradas nos princípios do neoliberalismo. Em toda parte onde são implantadas, seguem um modelo semelhante: redução da responsabilidade social do Estado, ênfase na estabilidade da economia, abertura dos mercados nacionais para o capital internacional e privatização das empresas estatais. Essas políticas foram construídas e colocadas em prática nos últimos 50 anos. A partir dos anos 80, passaram a ser implantadas pelos governos de quase todo o mundo, incluindo os da América Latina, que adotaram a lógica neoliberal.
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Consenso de Washington
O Consenso de Washington é resultante de um acordo entre as Instituições Financeiras Multilaterais (Banco Mundial, FMI) e o governo americano, firmado em novembro de 1989, onde são descritas as políticas de ajuste para a América Latina. Algumas recomendações já estavam em contratos de colaboração e de comércio anteriores. Com o Consenso, as Instituições e o governo dos Estados Unidos pactuaram a expansão das medidas de ajuste, que acabaram se tornando requisitos para os créditos concedidos aos países latino-americanos desde então.
Bretton Woods
Refere-se à Conferência Financeira e Monetária das Nações Unidas, realizada em Bretton Woods (New Hampshire, EUA, 1944), onde ocorreram alterações substanciais no sistema monetário internacional. Os acordos assinados levaram à criação do Fundo Monetário Internacional e do Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD, formado por várias instituições, entre elas o Banco Mundial).
V Reunião Ministerial da OMC
A V Reunião Ministerial da OMC acontecerá em Cancún, México, de 10 a 14 de setembro de 2003. Está inserida no acordo firmado na IV Reunião (Doha, 2001) onde foi acertada por ministros responsáveis pelo comércio dos países envolvidos, o lançamento de uma nova rodada de negociações multilaterais. Essa nova rodada terá uma agenda bastante ampla, podendo superar em quantidade de temas a Rodada Uruguai. A previsão é de que durará 3 anos, devendo estar concluída só em 2005. Site da OMC www.wto.org (em espanhol e inglês).