Sonia Corrêa, coordenadora para Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos da Rede DAWN
Desde o final da década de 70, quando a revolução iraniana derrubou o governo do Xá Reza Pahlevi levando ao poder o Aiatolá Khomeini, o mundo tem sido obrigado a revisitar a questão da relação entre o campo religioso e o campo político. O debate que se desenrola, desde então, nos marcos da ciência política convencional tem concentrado sua atenção nos regimes teocráticos do mundo islâmico, enfatizando que os mesmos significam uma ruptura com a tradição política moderna de separação entre o poder político e o “poder divino”. Este enfoque tende a desconsiderar, ou minimizar, a crescente influência que, em contextos democráticos, as forças religiosas integristas têm conseguido sobre estados que se autodefinem como laicos e cujas constituições contém princípios de separação entre Estado e religião.
Enquanto Khomeini se tornava objeto de atenção da mídia, como liderança fundamentalista global emergente, os setores católicos e protestantes integristas norte-americanos ganhavam enorme influência sobre a política doméstica e internacional do governo de Ronald Reagan. Em conseqüência, o acesso ao aborto se tornou um “anátema” e as mulheres que abortam passaram a ser tratadas como “novas heréticas”. Desde esse período, nos Estados Unidos, ataques virulentos são feitos contra clínicas de aborto e contra médicos que realizam o procedimento. Várias clínicas foram queimadas e seis profissionais assassinados. A posição “fundamentalista” do governo Reagan ganhou visibilidade internacional, em 1984, na Conferência de População do México, quando os EUA suspenderam seu apoio ao Fundo de População da ONU (FNUAP) alegando que os recursos eram usados para promover o aborto. Entretanto, os cientistas políticos e a grande imprensa nunca deram tanta atenção a isso quanto haviam dado ao fundamentalismo islâmico.Os efeitos da política de Reagan se tornariam preocupação exclusiva de setores envolvidos com o planejamento familiar e, mais especialmente, das feministas. Já em 1984, a Rede Dawn avaliava que o fundamentalismo nas suas diversas manifestações – islâmica, católica, hindu, protestante – constituía uma força política global emergente, cujos efeitos seriam desastrosos para a vida das mulheres. Passadas quase duas décadas, como sabemos, esta visão se confirmaria de maneira dramática: o fenômeno do fundamentalismo se tornou presente nos quatro cantos do mundo. O Talibã e o 11 de setembro são, como sabemos, apenas a ponta de um iceberg.
Na sua expressão religiosa, o fundamentalismo condena à morte mulheres nigerianas acusadas de adúlteras. Na Índia, está na origem de conflitos civis entre muçulmanos e hindus, em cujo rastro de sangue as maiores vítimas têm sido mulheres – estupradas sistematicamente – e crianças. Na América Latina, mobiliza a hierarquia católica contra o Protocolo Facultativo da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e motiva setores, como a Opus Dei e grupos evangélicos, contra políticas de saúde reprodutiva e mais especialmente os homossexuais e as lésbicas. Assim como já ocorria nos Estados Unidos, na região latino-americana essas forças vêm ganhando poder político pela via democrática. Arrebanham votos com base no controle de meios de comunicação e estratégias populistas, como a distribuição de recursos para os pobres através de redes religiosas. Em todos os lugares onde prolifera, o fundamentalismo religioso busca se enraizar nos setores excluídos das políticas públicas e dos ganhos econômicos, especialmente homens jovens em situação de desemprego. Mas em muitos casos, as mulheres também são personagens da política fundamentalista, funcionando como porta-vozes da defesa da família, da moral e dos bons costumes.
Desde setembro de 2001, a “guerra sagrada de Bush contra o eixo do mal” está na mídia todos os dias. Mas, raramente alguém informa ao grande público que a posição abertamente contrária a políticas de saúde sexual e reprodutiva é um componente fundamental da atual política externa norte-americana. Nele se contabiliza o bloqueio de recursos para ONGs de outros países que trabalham com aborto (conhecida como Regra da Mordaça), promoção da abstinência sexual como política de prevenção da AIDS e ataque contra o trabalho sexual pela via da política da USAID, para redução dos tráficos de seres humanos. Em dezembro de 2002, numa reunião da Comissão Econômica e Social da Ásia e do Pacífico (ESCAP) o governo norte-americano se posicionou abertamente contra agenda da Conferência do Cairo, ficando completamente isolado frente aos países das duas regiões. Hoje, toda e qualquer negociação que é feita com a administração Bush – como, por exemplo, os acordos sobre comércio e recursos para o desenvolvimento – pode trazer embutida uma barganha em relação ao aborto e à sexualidade. Governantes que vão a Washington ou negociam com emissários de Bush podem ouvir a seguinte frase: “Oferecemos recursos para combater a pobreza em seu país, desde que vocês se comprometam a manter o aborto ilegal e a promover a abstinência sexual.”
São, portanto, muitas e complexas as frentes em que devemos nos posicionar para conter os efeitos deletérios do fundamentalismo religioso sobre as leis, a política pública e o cotidiano da vida social. Por isto, é tão importante introduzir em nossas agendas a defesa permanente do Estado laico. Mas, isso não é tudo. Neste início de milênio, estamos frente a outras expressões de fundamentalismo que, embora não sendo religiosas, caracterizam-se pela crença intransigente num “texto sagrado”, ou numa verdade primeira e última. Uma das mais conhecidas é o chamado “fundamentalismo de mercado”. A imprensa tem atribuído a George Soros a invenção desta terminologia. Mas ela foi, de fato, criada por economistas feministas nos meados da década de 90. Ela significa um apego dogmático aos princípios da teoria econômica liberal, ou seja, “crença” num modelo econômico único que pode e deve ser aplicado em todo e qualquer lugar do mundo. Tal “crença”, sobretudo, impossibilita o reconhecimento dos problemas e crises que decorrem da aplicação do modelo.
Finalmente, estamos desafiadas a tomar em mãos uma outra manifestação de “fundamentalismo” que se dá no nosso próprio campo político: posições integristas que observam no âmbito das políticas identitárias, comunitárias e culturalistas. Embora a motivação destas forças e expressões políticas contemporâneas não seja religiosa, em muitos casos elas reproduzem preceitos fundamentalistas de pensamento e ação ao repelir abertamente o diálogo e o reconhecimento da “alteridade” que são inerentes à política democrática.
Ou seja, neste início de milênio devemos estar, por um lado, atentas e alertas frente ao fundamentalismo religioso que afeta a grande política, quanto, por outro, à tentação mais sutil do fundamentalismo econômico e político, lembrando que esse último, lamentavelmente, está latente em nosso próprio campo de ação, que são os partidos e a sociedade civil.
Dawn – Development Alternatives with Women for a New Era (Alternativas de Desenvolvimento com Mulheres para uma Nova Era)
USAID – United States Agency for International Development (Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional), é a agência de cooperação dos Estados Unidos.
Integrismo – Está relacionado com a incidência do religioso nas esferas social e política. Podemos falar de um integrismo político que condiciona a sobrevivência e a defesa de uma série de valores político-sociais (religião, família, pátria, ordem, propriedade) a um determinado sistema político e considera que esses valores estão ameaçados pelos novos sistemas. A esse tipo de integrismo podem ser aplicadas as mesmas características referentes ao integrismo político-religioso, que condena movimentos que pareçam impregnados de novos princípios, atualmente projetando-se sobre a democracia (extraído do Dicionário de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, 1987 Rio de Janeiro 2ª Edição).