Os feminismos da América Latina tem contribuído para alargar o sentido da democracia, criticando radicalmente o discurso liberal e midiático que coloca todas as mulheres em pé de igualdade, caracterizando as feministas como sujeitas empoderadas num mundo onde basta empreender para ganhar espaço, poder e voz.
O Encontro Feminista da América Latina e do Caribe é uma iniciativa que confronta esse discurso e desde seus primórdios promove articulações entre sujeitas, organizações e movimentos para dialogar sobre como o feminismo pode responder, resistir e transformar as estruturas da sociedade capitalista racista e patriarcal. Esse ano, entretanto, pautar a diversidade sem dispersão colocou no centro dos debates o enfrentamento do racismo.
Diversas, mas não dispersas, tema do 14EflacUruguay, não se refletiu em confluências ou diálogos interraciais para fortalecimento da luta antirracista na América Latina. Essa crítica foi consensuada entre as muitas mulheres negras/afro latinas, poucas indígenas e poucas brancas e ou não negras presentes na Assembleia que discutiu por dois dias a questão do enfrentamento ao racismo e privilégios da branquitude. As desigualdades entre mulheres brancas, negras e indígenas ainda não estão sendo enfrentadas de maneira coletiva, foi a conclusão do grupo de reflexão que contou com a participação de mais de 100 mulheres de todas as partes do continente.
Os golpes às democracias latinas, os discursos fascistas das igrejas neopentecostais, a guerra às drogas, o agronegócio e outras multinacionais avançam principalmente sobre a vida da população negra e povos indígenas. O grande capital por um lado promove o extermínio dessas populações ao impor às nações latinas uma política neoliberal de austeridade econômica, ou seja, controle de gastos públicos sociais, como saúde, educação e previdência, entregando à morte os que precisam desses serviços públicos. Assim o racismo estrutura o capitalismo: vale mais garantir que os grandes empresários não irão ter prejuízos do que preservar a vida da população negra e indígena.
Por outro lado, este mesmo mercado que valoriza e promove segregação como segmentação comercial, aproveita-se do momento de valorização cultural da estética negra para se apropriar de elementos ancestrais de uma etnia e gerar vendas e lucro. Isso é um reflexo da coisificação da cultura negra e tem reflexo principalmente nos corpos das mulheres negras. Esse processo de coisificação, iniciado com a escravização à qual foram submetidas as populações sequestradas da África e trazidas às Américas como mercadorias, tem consequências materiais e subjetivas devastadoras na vida das mulheres.
Por isso o documento final da Assembleia relata que “os feminismos afro-latinos, de mulheres negras, os feminismos indígenas, os feminismos lésbicos e transexuais estão aportando a ampliação das democracias e das cidadanias a partir de práticas concretas e da produção de conhecimentos que abrangem as experiências de viver o racismo e a discriminação”. Como espaço para construção de estratégias coletivas estava esvaziado de mulheres não negras, a filosofia “nós por nós mesmas” se fortalece. Essas mulheres afrodescendentes e indígenas estão construindo entre elas feminismos antirracista que são reflexos das consequências diretas do racismo, discriminações e opressões que enfrentam cotidianamente em suas vidas e estruturam as relações sociais. Elas estão auto-organizadas e avançando em estratégias de financiamento de projetos com objetivos de transformar o sistema, garantir direitos e preservar suas vidas.
As pouquíssimas mulheres brancas presentes reconheceram que é preciso bem mais que o incômodo com as práticas racistas. Para a ativista da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB),com Schuma Schumaher, é preciso primeiro reconhecer que a branquitude, uma construção sócio histórica produzida pela ideia falaciosa de superioridade racial branca, provoca uma zona de conforto, um lugar constante de privilégio social, material ou simbólico. Por isso, para mudar as estruturas de desigualdade e opressão é preciso não apenas reconhecer que o racismo estrutura o sistema capitalista e patriarcal, mas é preciso reconhecimento das desigualdades entre negras e não-negras e para democratizar as relações no interior do movimento feminista e redistribuição de poder e recursos na sociedade como um todo.
O pronunciamento final feito pela representante da organização brasileira Criola, Lúcia Xavier, que coordenou, junto com Schuma Schumaher, os dois dias de Plenária, indicou como conclusão do grupo que “é necessário que o feminismo se assuma anti-racista, descolonize-se, enegreça-se e se transgenerize”
Baixe o boletim especial com a cobertura das pautas raciais produzido pela organização brasileira Geledés : https://goo.gl/NxAE14
Texto produzido por la AFM y la Coletiva de Comunicação da Articulação de Mulheres Brasileiras
Foto: Sandra Centeno Montoya