Das rainhas que lutaram pela libertação do povo negro da condição de trabalho escravo até os dias de hoje, o legado das mulheres negras no país inspira a luta contra o racismo, contra o sexismo, por justiça social e pela superação das desigualdades produzidas por um sistema perverso.
Por SOSCorpo
Há 28 anos que o 25 de Julho foi instituído como o Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha. De lá para cá, em diferentes países da região e do mundo, a insurgência das mulheres negras tem se ampliado, alargando uma história que é de luta, resistência e de conquistas que começam bem muito antes de 1992. Contudo, a instituição desta data durante o 1º Encontro de Mulheres Afro-latino-americanas, Afro-caribenhas e da Diáspora, na República Dominicana, se tornou um marco político fundamental para a organização das mulheres negras para o enfrentamento das desigualdades de classe, de gênero e de raça e etnia produzidas pelo sistema capitalista, sobretudo pelo modelo neoliberal.
Desde 2014, o Dia Nacional de Tereza de Benguela, instituído pela presidenta Dilma Rousseff, marca no calendário nacional a importância das mulheres negras na constituição e desenvolvimento do país. Porém, mais do que uma data celebrativa, o 25 de Julho nos lembra como os efeitos perversos do racismo, do sexismo e da exploração colonial continuam, em pleno século XXI, imprimindo condições precárias à vida de milhões de mulheres negras e de classes populares. Um projeto de dominação e exploração que se aprofunda com o racismo estrutural e o racismo institucional.
De acordo com Mércia Alves, educadora do SOS Corpo, militante feminista do Fórum de Mulheres Pernambuco (FMPE) e da Articulação de Mulheres Brasileiras, o 25 de Julho é uma data para denunciar as desigualdades ainda persistentes na formação social brasileira que reflete na sub-representação das mulheres negras na política, no mercado de trabalho e nas universidades. “O 25 de Julho é uma data para lembrar e jamais esquecer dos efeitos perversos do racismo e do sexismo sobre a população escravizada nas Américas. É uma data que lembra a história de resistência do povo negro, das mulheres negras em particular, e de forma articulada, à toda força ancestral de mulheres negras, líderes quilombolas, guerreiras contra um modelo colonial que nos exterminou, nos silenciou durante séculos, violentando nossos corpos políticos como medidas de disciplinamento e poder de uma sociedade escravocrata-patriarcal-racista. É sobre os corpos destas mulheres que figuram as maiores violências físicas, psicológicas e simbólicas”, contou.
Diante de um governo negacionista, a violência do racismo se expressa também no apagamento da contribuição política, intelectual, no apagamento da existência e da história daquelas e daqueles que vieram antes de todas nós. Em tempos de pandemia do coronavírus, as vidas negras em todo o mundo estão colocadas em xeque, mais uma vez, e as profundidades das contradições do sistema neoliberal têm sido escancaradas de forma que não dá mais para seguirem sendo ocultadas. É neste contexto de emergência pela vida que a 8ª edição do Julho das Pretas vem sendo realizada em 2020 em múltiplas ações virtuais e de pressão política, que ultrapassa o território dos nove estado do nordeste, de onde a iniciativa apontou primeiro.
A existência do Julho das Pretas surge da iniciativa do Odara Instituto da Mulher Negra, em Salvador, e irradiou para os demais estados da região através da Rede de Mulheres Negras do Nordeste, que posteriormente, definiu que os nove estados que a compõem construíssem calendários locais que deságuam em um calendário regional. A iniciativa mostra o poder de organização das mulheres negras e desta ação que já entrou para o calendário de lutas dos movimentos de mulheres negras não apenas no nordeste, como explica a coordenadora da ação em Pernambuco, Rosa Marques.
“As ações do Julho das Pretas, que hoje ultrapassa os limites da região nordeste, são baseadas em temas importantes para a superação do Racismo, como a violência contra as mulheres negras, o sexismo, a lesbofobia e a transfobia, e se configura como um momento importante para pautar uma agenda política que coloca as mulheres negras nordestinas em evidência. Em 2020, o tema da 8ª edição do Julho das Pretas é ‘Em defesa das vidas negras, pelo bem viver’, e tem o objetivo de pautar a valorização das vidas negras, buscando um tom mais propositivo para a mobilização política, trazendo também o projeto político de bem viver que desde a marcha das mulheres negras vem sendo pautado como uma outra forma de organização social e práticas políticas”, ressaltou Rosa, que integra a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco.
“Ao reivindicar nossa diferença enquanto mulheres negras, enquanto amefricanas, sabemos bem o quanto trazemos em nós as marcas da exploração econômica e da subordinação racial e sexual. Por isso mesmo, trazemos conosco a marca da libertação de todos e todas. Portanto, nosso lema deve ser: organização já!”
Lélia Gonzalez
A organização política das mulheres negras no país tem sido fundamental e é a base de qualquer ação que visa a luta pela superação das estruturas que as oprimem. Inspiradas na força e no ensinamento ancestral, as mulheres negras estão seguindo os passos em um caminho que foi aberto ao longo de muita luta, dor, revolta e de levante. A potência de organização reverbera nas sujeitas em si, mas, também, em suas comunidades, olhando as condições de vida das populações negras desde a infância até a velhice. Tanto a data quanto as ações que fortalecem o 25 de Julho como marco político de uma luta internacional, são também constitutivos do legado de organização das mulheres negras no Brasil, organização essa que sempre esteve presente na luta de Tereza de Benguela, Dandara, Aqualtune, Beatriz do Nascimento, Luiza Bairros, Lélia Gonzalez e tantas outras.
“Como diz [acima] Lélia Gonzalez, feminista negra, e uma referência de resistência que ousou questionar os lugares que o racismo nos coloca, e nos ensinou que para romper com o racismo e o sexismo é preciso organizar-se. E é isso que uma ação política como o Julho das Pretas nos coloca. É denúncia e anúncio de uma nova sociabilidade que coloca a mulher negra no centro da luta e disputa novas narrativas centradas da altivez, sabedoria, na beleza, na intelectualidade, na política, na arte, na cultura marcada pela contribuição de uma visão, cosmovisão, ancestral de mulheres negras que na força da luta, resistem!”, salientou, Mércia Alves.
Este legado de força e enfrentamento que vem da ancestralidade permitiu que lá na década de 1930 Antonieta de Barros chegasse ao parlamento, abrindo o precedente para que mais mulheres negras ingressarem na política institucional anos mais tarde, direito que foi garantido com a Constituição de 1988. Benedita da Silva, Leci Brandão, Olívia Santana, Jô Cavalcanti, Kátia Cunha, Robeyonce Lima, Erica Malunguinho entre outras, ocupam hoje lugares no parlamento que são fruto desta luta. Organização política que reverbera na vida das trabalhadoras domésticas, que tiveram com Laudelina Campos de Melo, também na década de 1930, o início da luta pela valorização do emprego doméstico no Brasil.
Para Elzanira da Silva, mulher negra, militante feminista do FMPE e da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, a organização é fundamental para a compreensão de sua realidade, dos seus direitos e de fortalecer-se para lutar em sua comunidade. Diarista, ela é uma das milhões de mulheres que tem o trabalho doméstico remunerado como meio de garantir o sustento próprio e de sua família. Com a chegada da Pandemia, ela e as mais de 7 milhões de trabalhadoras domésticas do país, categoria de trabalho que em grande parte é composta por mulheres negras, foram colocadas em situação de mais vulnerabilidade. Por conta das ações das redes de solidariedade, lideradas por mulheres negras, Elza e outras mulheres de bairros populares estão recebendo apoio e seguem na luta para ajudar quem está em contexto de desproteção total por parte do Estado. Segundo ela, o legado de Tereza de Benguela inspira à luta para continuar na resistência.
“O 25 de julho é uma data para rememorar a luta das mulheres negras. Celebrar o Julho das Pretas é se inspirar na luta de Tereza de Benguela, que lutou muito pelo direito à terra, o nosso símbolo de resistência. Como mulher negra feminista e antirracista, este dia para mim é lutar e continuar na resistência combatendo toda a forma de opressão contra nós. É lutar contra esse sistema patriarcal, luto por uma sociedade sem violência contra mulher. Este dia 25 de julho é um dia de lutar contra desigualdade racial, contra o racismo que nos machuca, nos dói. Mas, somos a resistência e enquanto eu tiver em movimento feminista e na Rede de Mulheres Negras, podemos seguir para que tenhamos uma sociedade livre de toda de toda forma desigualdade para todos e para as mulheres pretas. Salve o Julho das Pretas”, celebrou.
Na imagem: Tereza de Benguela, Aqualtune, Maria Firmina, Maria Filipa, Tia Ciata, Zeferina, Dandara, Laudelina Campos Melo, Antonieta Barros, Carolina Maria de Jesus, Luiza Bairros, Lélia Gonzalez, Beatriz do Nascimento, Marielle Franco, Sueli Carneiro,Vera Baroni, Iêda Leal, Inaldete Pinheiro, Lia de Itamaracá, Maria Aparecida Silva Bento, Vilma Reis, Valdercir Nascimento, Benedita da Silva, Conceição Evaristo, Mônica Oliveira, Analba Brazão, Rivane Arantes, Mércia Alves, Verônica Pedro, Rosa Marques, Joaninha Dias, Leci Brandão, Robeyonce Lima, Kátia Cunha, Jô Cavalcanti, Erica Malunguinho, Cidinha da Silva, Creuza Oliveira, Luiza Batista, Débora da Silva, Nilma Lino Lopes, Ana Maria Gonçalves, Dora Lúcia Bertúlio, Jurema Werneck, Elzanira da Silva, Espaço Mulher de Passarinho, Eliane Cavalheiro.
Saudamos e honramos a luta de todas que vieram antes de nós e das que seguem este legado de construção de um caminho por liberdade e por justiça social.